Crianças na ditadura: ‘bebês de um ano chegaram a ser torturados’

"Muitas vezes se fala que quem foi assassinado durante a ditadura era terrorista. Mas as crianças eram terroristas?", questiona a jornalista Tatiana Merlino

Da redação Publicado em 04.04.2019
Foto de uma mão, segurando três retratos em preto e branco, uma foto de um bêbe, outro de um casal, e outra de uma criança, cujo as três fotos estão juntas em suas mãos
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Resumo

O bate-papo Expresso 227 reuniu pesquisadores que denunciaram os abusos cometidos contra crianças e adolescentes na ditadura militar - torturas, sequestros e diversas outras violações de direitos. "Algumas crianças estão desaparecidas até hoje", afirma Eduardo Reina.

Nesta semana que marca 55 anos do início do regime militar instaurado no Brasil, o bate-papo online #Expresso 227: crianças e adolescentes no Brasil, foi realizado para relembrar e dar perspectiva histórica, humana e social a crimes cometidos contra crianças e jovens durante a ditadura.

A conversa contou com transmissão ao vivo, pelo YouTube do Instituto Alana, e aqui o Lunetas seleciona e repercute os principais temas que foram discutidos.

O nome do bate-papo é uma alusão ao Artigo 227 da Constituição Federal, que se refere aos direitos da criança e o dever compartilhado da família, da sociedade e do Estado de assegurá-los. Clique aqui para saber mais.

Conduzido pelo advogado e coordenador do programa Prioridade Absoluta, Pedro Hartung, o encontro teve a presença de Carla Borges, do Instituto Vladmir Herzog, Tatiana Merlino, autora do livro “Infância roubada”, e Eduardo Reina, autor da obra “Cativeiro sem fim”. Ambas as publicações contam casos de crianças e adolescentes atingidas diretamente pelo regime, esta última retrata especificamente casos de bebês sequestrados durante a ditadura militar. O objetivo do bate-papo é rememorar e perspectivar uma série de violações de direitos humanos.

Pedro começou citando o filósofo e professor alemão Karl Jaspers (1883-1969), reconhecido por sua luta contra o nazismo. “A experiência do presente compreende-se melhor refletida no espelho da História. O que a História nos transmite vivifica-se à luz da nossa própria época. A nossa vida presente processa-se no esclarecimento recíproco do passado e do presente”.

A primeira provocação que norteou o encontro foi a opinião dos convidados sobre a negação recorrente da ditadura militar no Brasil, como se ela não tivesse existido e nem representado um período de violações.

“Há uma tentativa de revisionismo histórico em pleno vapor no Brasil. Muitas pessoas viveram essa época, mas não têm acesso e nem noção do que foram esses 21 anos de terror no nosso país”, diz Carla.

“Um país que não conhece sua história está fadado a repetir os mesmos erros no futuro. E muitas vezes no presente, como eu temo que pode acontecer agora”

Carla rememora uma série de abusos cometidos no período, como crianças e adolescentes separados de suas famílias e levados arbitrariamente para serviços de acolhimento – à época chamados de abrigos. Pedro pontua também o fato de muitos adolescentes considerados “em situação irregular”, terem sido recolhidos pelo Estado e institucionalizá-los em espaços degradantes.

“Um país que nunca conseguiu fazer justiça aos seus cidadãos não pode dizer que vive em uma democracia plena”

Violências sofridas pelas crianças na ditadura

“Muitas vezes se fala que quem foi assassinado durante a ditadura era por ser terrorista. Mas vamos olhar para as crianças. Elas eram terroristas?”, questiona Tatiana.

Editado pela editora da Assembleia Legislativa, e, portanto, não comercializado, o livro “Infância roubada” apresenta 44 histórias em primeira pessoa, e resulta de uma série de audiências públicas realizadas na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Foram reunidos cerca de 50 testemunhos, incluindo filhos de presos políticos, desaparecidos e sobreviventes do período.

Tatiana pontua que o período submeteu parte significativa da infância brasileira a violações de direitos de diversas naturezas. Por exemplo: crianças que nasceram nas prisões, crianças que foram torturadas, que assistiram à prisão e ao assassinato de seus pais, ou que foram exiladas e obrigadas e viver na clandestinidade.

“Algumas crianças foram levadas aos órgãos de repressão, torturadas na frente dos pais, e usadas como instrumento de pressioná-los a falar. Algumas, com apenas dois anos, foram fichadas, como é o caso de Ernesto do Nascimento. Ele, com outros dois irmãos, chegou a ser banido do Brasil como subversivo”, conta Tatiana.

Segundo a autora do livro, o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), bebês de um ano e oito meses chegaram a ser torturados, com choques e chutes. A pesquisadora pontua que os danos – morais, sociais, físicos e psíquicos – às vítimas desse tipo de agressão são incalculáveis, e conta que há casos de pessoas que cometeram suicídio em função dos traumas de uma primeira infância violada. É este o caso de Carlos Alexandre Azevedo – conhecido como Cacá – torturado com pouco mais de um ano.

Recentemente, Eduardo Reina teve acesso a relatos de familiares de ativistas políticos, e reuniu 19 casos de bebês, filhos de militantes políticos, que foram diretamente violados. Reina traça um paralelo com o regime ditatorial argentino, em que o quantitativo das vítimas era ainda maior em comparação ao Brasil. Estima-se que tenham sido 500 filhos de militantes presos, e que contava com um manual de procedimentos com o qual as forças militares contavam.

“Na Argentina, crianças de zero a quatro ou seis anos que eram levadas a centros de detenção da ditadura, eram passíveis de adoção. O entendimento do sistema era que essas crianças não estavam inoculadas com o vírus do comunismo e a ideologia dos pais. A partir dos seis, a ordem era para matar, entre filhos de camponeses e guerrilheiros”

“Algumas crianças estão desaparecidas até hoje”, afirma Eduardo Reina.

Criança é prioridade absoluta

Pedro Hartung reforça a importância de assegurar, de forma corresponsável, ou seja, envolvendo Estado, comunidades e famílias, os direitos das crianças. O advogado relembra que o contexto em que foi criado o Artigo 227, justamente no período de redemocratização do país, em que a criança foi colocada como prioridade absoluta no âmbito das decisões públicas e privadas. Como estabelecer práticas de cultivar a memórias e os seus direitos? Essa foi a pergunta feita aos convidados.

“Falar de violência de Estado no Brasil, não é falar de algo que acontece somente hoje, e sim de uma cultura de violência que faz vítimas – sobretudo uma juventude negra e pobre – desde que o Brasil se entende como Brasil”, pondera Carla.

Assista ao bate-papo #Expresso227 a na íntegra.

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