Por estarem atreladas ao conhecimento e à preservação de saberes ancestrais, as línguas indígenas se tornam um elemento central no processo de luta por território e de afirmação da legitimidade das identidades étnicas dos povos indígenas diante das transformações sociais a que estão sujeitos. Para os Kaingang, a valorização da língua materna se dá pelo resgate da memória, da tradição e do ensino de história – processo político que passa pela defesa da “indianização das escolas”.
Nesta vitalização do idioma nativo, a transmissão da língua materna às crianças varia de uma terra a outra, como acontece em duas aldeias no Vale do Taquari visitadas pelo Lunetas. Na comunidade indígena Coqueiro Verde, no município de Cruzeiro do Sul (RS), as crianças aprendem a língua primária Kaingang e frequentam uma escola pública não indígena, sendo a maioria bilíngue. Já na aldeia Foxá, que fica na cidade vizinha de Lajeado, todas as crianças aprendem a língua primária, falam e cantam em Kaingang, e estudam em uma escola indígena que fica na própria aldeia.
A língua Kaingang e a escolarização das crianças nas aldeias
“A língua Kaingang é importante para que a criança não apenas fale sua língua materna, mas também aprenda a ler e escrever na sua língua”
Essa é a visão da pesquisadora e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Juliana Medeiros, que atua em uma escola indígena. Ela defende que “se a educação escolarizada vai fazer parte do dia a dia das comunidades, ela precisa ser uma escola indígena, com professores Kaingang e a língua Kaingang como principal, e não uma escola nos moldes ocidentais”. Para ela, uma escola indígena precisa “ser uma escola intercultural, em que os conhecimentos, as culturas e as línguas Kaingang e não indígenas estejam presentes, sejam valorizadas e tratadas em pé de igualdade”, afirma.
A língua Kaingang é motivo de orgulho para os povos, mas pode ser um problema no cotidiano ou quando as crianças frequentam a escola não indígena. Como é o caso do povoado de Coqueiro Verde. Além de as crianças precisarem se deslocar para ir à escola não indígena, é comum perder a língua primária. Por isso, o cacique Gregório questiona: “Por que algo ancestral precisa ser amparado em leis para ser efetivo? Isso desvaloriza o conhecimento e os modos de vida originários dos povos indígenas”, defende.
Em Foxá, há um professor que ministra aulas na língua Kaingang na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Gatén que, na língua portuguesa, significa “espírito da terra”. As crianças permanecem no local até o quinto ano e aprendem sobre a língua e os ensinamentos da cultura Kaingang. Depois, como Hellen, 9, passam a frequentar escolas públicas não indígenas.
O pedagogo e mestre em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Josias Loureiro de Mello ressalta a importância da língua Kaingang em escolas indígenas: “O diálogo, a intervenção, a mediação com professor teriam que ser baseadas na língua, porque a língua vem carregada de conhecimentos. Ela traz a tradição, os conselhos que marcam a família e os ensinamentos que seguem junto com a vida”, comenta.
Preservar a língua é preservar saberes
Atualmente, 160 línguas e dialetos indígenas no Brasil integram o acervo de quase sete mil línguas do mundo contemporâneo. Segundo dados do Censo de 2010, cinco delas possuem mais de 10 mil falantes. Para visibilizar essa diversidade, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) celebrou o Ano Internacional das Línguas Indígenas, em 2019.
Josias reforça que “a educação formal e a escola são instituições estranhas ao povo Kaingang. Há uma tentativa de se adaptar a ela e fazer uma escola indígena diferenciada, mas isso tem ficado no papel”. Ele também questiona a grade curricular oferecida na escola indígena: “O que ela está ofertando nas aldeias? Será que é uma educação específica, diferenciada, ou será que é aquela escola que reproduz?”.
O conhecimento e a manutenção desse extenso repertório representa um desafio para linguistas e povos indígenas, podendo levar à perda de identidade cultural e, consequentemente, à maior fragilização de suas lutas e seus territórios. Nesse sentido, a escola nas aldeias também desempenha um papel importante de preservação das línguas indígenas e da cultura, muitas vezes, por meio do registro e da documentação de contos, cantos, brincadeiras e mitos de suas comunidades.
Mesmo que muitos saberes ancestrais estejam se perdendo, para muitos indígenas, a língua Kaingang é fundamental e vai além da comunicação. Para eles, a língua é a grande guardiã dos conhecimentos. Assim, ainda que as crianças trilhem outros caminhos, por vezes distantes da aldeia onde cresceram, a memória da língua aprendida vai encontrar sempre a infância vivida na presença do exemplo dos seus.
As vivências ancestrais e o envolvimento das crianças na rotina da aldeia
Para alguns indígenas, ir para a escola muito cedo pode desvincular as crianças das vivências cotidianas com a família e com o meio em que vivem, sobretudo se for uma escola tradicional. Então, a partir de suas cosmologias, esses povos defendem que não deveria haver educação infantil, para que as crianças passassem esse tempo com seus pais e outras pessoas da comunidade, incorporando os conhecimentos tradicionais Kaingang conforme seus modos próprios de aprendizagem.
Na cultura Kaingang, além de as crianças serem responsabilidade de todos, elas aprendem a partir da observação dos adultos, e têm o respeito e o reconhecimento dos mais velhos.
A professora Juliana esclarece que “os Kaingang respeitam a criança como ela é e a consideram com capacidade de fazer tudo. Por isso, “as crianças são sempre envolvidas nas atividades diárias da família e da comunidade, não havendo uma separação clara entre o que adultos e crianças podem fazer”, diz.
Entre os brinquedos – a bola furada, o carrinho quebrado -, o cacique Gregório sente falta das crianças brincando no pátio, e não tão presas aos joguinhos de celular, atividade preferida de Sara, 5, mesmo que o aparelho não tenha conexão com a internet. Em Coqueiro Verde, pela proximidade com áreas urbanas, o brincar das infâncias indígenas já está mais voltado às tecnologias, enquanto “crianças do interior seguem criando seus próprios brinquedos, inventam brincadeiras, tomam banho de rio, correm e escalam árvores”, explica Josias.
Além do brincar livre e mais conectado à natureza, o cacique também reconhece que outros “aprendizados vêm se perdendo”.
“No meu tempo, aprendi a caçar, a pescar, a reconhecer ervas nativas. Hoje as crianças não fazem mais isso”
Em Coqueiro Verde, ainda é comum o hábito dos avós banharem as crianças com ervas medicinais contra picadas de mosquito, para aliviar dores ou até mesmo alergias, por exemplo. A perda dos saberes tradicionais relacionados a plantas medicinais – grande parte deles atrelada a línguas indígenas ameaçadas, conforme demonstrou um estudo recente da Universidade de Zurique, na Suíça – reforça o ofício principal da educação Kaingang, como pontua o pedagogo Josias: a convivência com os mais velhos, de quem as crianças herdam os conhecimentos, passados de geração em geração pela oralidade e pelos modos de vida da aldeia, dia a dia.
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Os povos Kaingang – um dos cinco povos indígenas mais populosos do Brasil – estão distribuídos por quatro Estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Exerceram importante influência na formação da população e da cultura rio-grandense. Segundo o IBGE, os Kaingang somam 37.470 pessoas, da quais 31.814 vivem em terras indígenas.
Coqueiro Verde, que não é uma terra demarcada, enfrenta desafios relacionados à garantia de seus direitos não muito diferentes de outras etnias espalhadas pelo Brasil. Não há sequer saneamento básico e, até pouco tempo, não havia nem água e luz.
O cacique Gregório Kaingang fundou a aldeia Coqueiro Verde, no final de 2017, depois de deixar Foxá. Entre as oito famílias que ali vivem, 36 indígenas descendentes da aldeia Foxá, estão seus 10 filhos e 17 netos. Na aldeia Foxá, que ocupa uma área cedida pela prefeitura, vivem 300 indígenas e é o cacique Luiz Alan quem administra o local. Em ambos povoados, o sustento vem do artesanato (filtros dos sonhos e cestos, principalmente), além de doações da sociedade civil.