Crianças do Quilombo Urbano resgatam parte da história de Manaus

Ao ensinar a arte da confecção de bonecos, a proposta do projeto é repassar saberes ancestrais às crianças do Quilombo São Benedito

Chris Reis Publicado em 12.01.2022
Uma menina com camiseta de estampas coloridas posa com dois bonecos de pano. Atrás dela, há folhagens
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Resumo

Ao aprenderem a confeccionar bonecos, crianças manauras do quilombo São Benedito reproduzem narrativas sobre a história de seus ancestrais.

Fincado no coração da Praça 14 de Janeiro, em Manaus, está o Quilombo Urbano do Barranco de São Benedito. Pode parecer, a princípio, um espaço periférico comum. Mas trata-se do segundo quilombo urbano do Brasil, certificado pela Fundação Cultural Palmares, em 2014, e Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Amazonas.

O espaço quilombola foi ocupado por descendentes de escravos desde a chegada da Dona Maria Severa Nascimento Fonseca e sua família, há 128 anos, como escrava alforriada do município de Alcântara, no Maranhão. Dona Severa trouxe consigo costumes e tradições de seus antepassados, que hoje permanecem vivos na memória e nas narrativas de seus descendentes.

Com o objetivo de preservar a memória coletiva da comunidade a partir do resgate da cultura negra no Amazonas, principalmente repassando às crianças saberes, um grupo de mulheres (professoras, pedagogas e filósofas) fundou a Associação Crioulas do Quilombo de São Benedito. Lá, são realizadas “Rodas de conversa”, com cerca de 50 crianças, que nasceram e vivem na comunidade, para debater sobre a questão da negritude a partir da contação de histórias com bonecos.

Por meio dessas encenações pensadas especialmente para elas, as crianças são convidadas a responderem questões sobre o que foi ensinado, de modo a fixar o aprendizado, e também aprendem a produzir seus próprios fantoches e bonecas de pano, “uma forma de reproduzir a história de nossa gente às crianças a partir de bonecos, que se transformam também em orixás e figuras históricas pretas”, conta Jamily Souza, uma das coordenadoras das ações do Quilombo.

Leia também: Bonecas Abayomi: o perigo de contar uma história hegemônica

De acordo com ela, a ideia é não deixar a memória das pessoas que construíram o quilombo e sua cultura morrerem. “As atividades são uma forma de garantir que a nossa história não se perca futuramente. Queremos que as próximas gerações saibam tudo que nossos antepassados fizeram e a importância de preservar a cultura que deixaram, por isso o trabalho direcionado aos pequenos”, comenta.

“Reconstruímos uma história de resistência e luta para a manutenção das nossas tradições e para reafirmar nossas identidades étnicas”

Os griôs também desempenham papel importante ao auxiliarem na tarefa de repassar conhecimentos às crianças do quilombo manauara, nas “Rodas de conversa”. “Esse é o momento dos mais velhos contarem suas experiências de vida e compartilharem suas memórias”, explica Jamily.

A pedagoga Rafaela Fortes, moradora do quilombo e uma das responsáveis pela realização das oficinas, explicou que a ideia é fazer com que as crianças tenham orgulho da história de seu povo. “Observamos que utilizar métodos mais criativos dá mais resultados, porque atrai as crianças a participarem e dá a oportunidade de serem inseridas”, avalia. Para ela, essa nova geração pode fincar a tradição com esses aprendizados. 

“Encontramos nossa forma de contar nossas histórias e defender nossos costumes. Para nós, é essencial que as crianças daqui tenham uma educação antirracista, para saberem se posicionar. Entendemos que o negro tem que estudar em dobro para ser respeitado”, avalia.

A memória dos antepassados visitada pelas crianças

Participante ativa do Quilombo, Evelyn, 11, considera as atividades que envolvem a criação dos bonecos e narração das histórias uma “forma legal” de incentivar a conhecer a ancestralidade da população local. 

“A gente fica feliz de conhecer sobre nossas origens e saber de onde viemos. Tudo que a gente aprende aqui, com certeza vamos levar para sempre. Fazer bonecas é divertido, mas é sério!”

Para June, 9, a confecção de bonecos ajuda a “não esquecer de quem somos e de onde viemos. É importante participar de tudo. Eu gosto de fazer as bonecas e conhecer histórias”, resume.

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Crianças durante oficina de confecção de bonecos de pano na Associação Crioulas do Quilombo de São Benedito

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Crianças durante oficina de confecção de bonecos de pano na Associação Crioulas do Quilombo de São Benedito

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Crianças durante oficina de confecção de bonecos de pano na Associação Crioulas do Quilombo de São Benedito

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Crianças durante oficina de confecção de bonecos de pano na Associação Crioulas do Quilombo de São Benedito

 

Para o filósofo Vinícius Alves da Rosa, que pesquisa o quilombo e sua importância cultural para a história do Amazonas, trata-se de “um território cuja forma de vida cabe ser abordada, seja na resistência da manutenção de terras, seja no processo de luta por reconhecimento social”. Sobre a participação das crianças nas ações desenvolvidas no dia a dia e por meio da educação quilombola repassada via oralidade, ao produzirem artesanato ou escreverem livros infantis com personagens negros e negras, por exemplo, “as crianças desenvolvem aos poucos consciência e identidade étnicas, à medida em que vão conhecendo as histórias e vivências junto à comunidade”.

Viva São Benedito. Viva!

Os remanescentes quilombolas mantêm a tradição ao redor de São Benedito. É uma das formas de inserção e participação das crianças, pois o festejo é apontado como o responsável pela preservação da tradição dos fundadores da comunidade do Barranco que, há mais de um século, realiza as festividades em honra ao padroeiro da vila.

“As crianças adoram adornar o mastro com as frutas. Elas se sentem parte integrante de tudo”, diz Jamily. Para ela, esta é uma importante ocasião quando as crianças percebem a importância de morar no quilombo, no meio da cidade. 

A pequena June adora participar da festa do santo e enfatiza que a parte legal é enfeitar o mastro e também quando ele cai. “A gente participa todo ano e sabe que é importante para nossa cultura, que isso faz parte da nossa vida”, diz.

Durante a festa de São Benedito, quando as pessoas visitam a comunidade, Jamily percebe o quanto a tradição e a comunidade se tornaram importantes para a cidade. “Isso também é por causa do que repassamos às novas gerações”, analisa.

“Essas atividades vão gerar nas crianças novas fontes de memórias”, analisa a historiadora Irian Butel. Para ela, é uma forma de garantir a manutenção da identidade cultural dos povos afrodescendentes de Manaus. “Não é apenas um espaço de vivências. São famílias inteiras que se reconhecem em laços de parentesco e laços culturais, e promovem a sua memória por meio do repasse de conhecimentos e tradições.”

“Contar a história é um mecanismo de tradição de saberes”

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