As violências cometidas pelo Estado contra bebês e crianças na ditadura ainda é um capítulo sombrio da história; como romper o silêncio que atravessa gerações?
A cada ano, novas vozes ajudam a reconstruir uma narrativa encoberta durante a ditadura no Brasil. Entenda como a repressão militar afetou a vida das crianças à época e continua marcando a memória de pessoas que buscam suas verdadeiras identidades.
“Quem é essa mulher que tem a voz da minha mãe?” A dúvida diante de uma pessoa de rosto desfigurado é uma das principais memórias do professor de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Edson Luis de Almeida Teles, que, aos quatro anos de idade, era levado por policiais ao temido Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, conhecido como DOI-Codi, para ver o resultado da tortura de seus pais, a jornalista Maria Amélia de Almeida Teles (Amelinha Teles) e César Augusto Teles. Embora o uso de crianças como forma de repressão a militantes e não militantes seja um capítulo pouco conhecido da ditadura militar, as marcas dessa violência permanecem.
Em 2013, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” realizou um ciclo de audiências públicas, convocando dezenas de pessoas a darem seus depoimentos sobre a ditadura no Brasil. Foram ouvidos filhos de presos políticos, de militantes assassinados ou de pessoas que, ainda hoje, estão desaparecidas. Muitos daqueles que narraram suas histórias eram crianças à época e nunca haviam levado à público seu relato pessoal. Os 44 testemunhos, incluindo o de Edson, deram origem ao livro “Infância roubada”, organizado pela jornalista Tatiana Merlino e disponibilizado virtualmente pela Assembleia Legislativa de São Paulo
A publicação, com centenas de páginas, deixa evidente que essas histórias não trazem apenas violência física, mas psicológica, aquela que sequestra corpos e também memórias. Quando a designer Camila Sipahi Pires relembra a prisão de seus pais, Rita Maria de Miranda Sipahi Pires e Antônio Othon Pires Rolim, tudo parece nebuloso: “Passei por um processo de esquecimento, (…) ‘apagamento’ de memória, gerado pela angústia e pelo medo, que me poupou das dores imediatas da separação”, relata. Ela tinha apenas cinco anos. Seu irmão, Paulo de Miranda Sipahi Pires, com sete anos, em 1971, apresenta desenhos guardados ao longo dos anos – uma forma de retratar sentimentos que não podiam ser traduzidos verbalmente.
A ditadura militar (1964-1985) mudou radicalmente os rumos da política brasileira e dos países da região. Durante o período de repressão, movimentos populares organizados, como sindicalistas, camponeses, estudantes, artistas, professores e intelectuais foram perseguidos, presos, torturados e exilados, por meio de crimes e ações coordenadas pelo próprio Estado.
A ditadura militar no Brasil torturou 20 mil pessoas; 434 foram mortas ou desapareceram.
Os dados são da organização Human Rights Watch. Em 1979, no governo de João Baptista Figueiredo, a Lei da Anistia concedeu perdão aos que se opuseram ao regime militar, abrindo caminhos para a redemocratização do Brasil. Apesar disso, os repressores da ditadura brasileira seguem impunes (as raras condenações foram apenas no âmbito civil) e tantas famílias ainda não tiveram justiça.
Mais conhecida como Dodora, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes prefere não falar em nome de seus filhos, André e Priscila (à época com três e dois anos, respectivamente), mas contar a versão de uma mãe de 27 anos que fez tudo que pôde para proteger duas crianças pequenas das dores da prisão. Os três foram sequestrados em 1968, em Pariconhas, município de Alagoas, imediatamente após o anúncio do decreto do AI-5, que marcou o período mais duro de censura e repressão na ditadura. “Quando aqueles homens arrombaram a porta de casa, meu corpo recebeu uma descarga de adrenalina e senti medo pela primeira vez. Agarrei meus filhos e decidi que eles iriam comigo pra onde fosse”, diz.
Em entrevista ao Lunetas, Dodora relembra os momentos mais difíceis que passou durante os cinco meses em que os três, incomunicáveis, foram transferidos do DOPS de Maceió para a Escola de Aprendizes de Marinheiros e depois para o hospital da Polícia Militar, no centro da capital, uma memória também compartilhada na apresentação de seu livro “Tortura” (Editora Caso do Psicólogo).
André e Priscila eram filhos de militantes que discordavam dos rumos que a política brasileira havia tomado e tiveram que passar cinco meses trancados em quartos de investigadores, celas de prisão e pátios cheios de lixo e ratos, se alimentando à base de feijão com farinha. Para afastá-los daquela experiência, Dodora passava os dias contando histórias, inventando brincadeiras e apelidando ratos de “Jerry”. “Acho que consegui sustentar um laço materno de proteção essencial para a saúde psíquica dos meus filhos naquele momento, pois eles não se lembram de enfrentar situações de perigo.”
Após passarem pelo tribunal militar em Recife e autoridades se darem conta das ilegalidades envolvidas no caso, as crianças receberam anistia e a família foi liberada. Apesar disso, André e Priscila não tinham documentos e precisaram adotar sobrenomes falsos (Guimarães Silva), passando a viver na clandestinidade. “Acredito que essa tenha sido a fase mais difícil para eles”, afirma Dodora. Aos 84 anos, carregando décadas de luta por direitos, ela ainda considera a atuação policial e a situação carcerária um nó entalado na garganta do Brasil:
“A pior tragédia que pode existir num país é prender crianças”
“Questão do menor”
O período da ditadura militar é um marco na história da luta pelos direitos das crianças no Brasil, sendo conhecido por maior controle estatal na vida das crianças, jovens e famílias em situação de vulnerabilidade social. Em 1964, foi criada a Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) para institucionalização de crianças abandonadas e “menores infratores”. A denominada “questão do menor” foi um alvo frequente de intervenções do Estado com base na Doutrina de Segurança Nacional e na Doutrina da Situação Irregular. Em 1979, o Brasil promulgou o novo Código de Proteção dos Menores, integrando a doutrina de proteção integral.
Há décadas pesquisando as estratégias de atuação conjunta dos regimes militares na América Latina, o jornalista Eduardo Reina se perguntava se o Brasil teria registrado, a exemplo de países como Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Guatemala, sequestros de bebês durante a ditadura. “Durante muito tempo, não encontrei pistas que pudessem me dar respostas”, diz. Dois meses após lançar o romance “Depois da Rua Tutoia” (11 Editora), que conta a história de um bebê, filho de militantes, sequestrado por agentes da repressão, o jornalista foi procurado por Rosângela Serra Paraná, uma moça adotada no Rio de Janeiro por uma família de militares e que passou 50 anos sem data de nascimento ou qualquer informação sobre os pais verdadeiros. Essa foi a chave que permitiu que Eduardo vislumbrasse um assunto até então ocultado na história do Brasil.
Eduardo teve contato com 19 casos de crianças sequestradas e familiares dessas crianças, especialmente na região do Rio Araguaia, entre Tocantins, Pará e Maranhão, onde se estabeleceu, entre as décadas de 1960 e 1970, o movimento guerrilheiro de combate à ditadura conhecido como Guerrilha do Araguaia. A investigação foi reunida no livro-reportagem “Cativeiro sem fim” (Alameda Editorial), lançado em 2019.
“Todos esses casos envolvem muitos problemas e traumas psicológicos”
Diferente de como acontece na Argentina, em que são as mães e as avós (como as que deram origem à organização Avós da Praça de Maio), que buscam seus filhos e netos desaparecidos, no Brasil, os filhos que estão se descobrindo vítimas desses crimes e buscando suas raízes. Eduardo conta que, no país vizinho, o modus operandi era determinado por uma cartilha explícita: “Até cinco anos de idade, as crianças poderiam ser adotadas por militares, pois não estavam ‘contaminadas’ com a ideologia dos pais. Acima dessa idade, a recomendação era matar, porque achavam que não havia mais salvação.”
Esse comportamento, que já havia sido adotado por franceses e portugueses nas táticas da guerra “antirrevolucionária”, é conhecido como “extermínio do inimigo” e se trata não apenas de prender e torturar o militante, mas acabar com todo o entorno dessas pessoas. Isso, segundo o jornalista, também explica em partes o sequestro de bebês durante a ditadura no Brasil, uma estratégia para a eliminação dos chamados “inimigos da pátria” e, consequentemente, de suas ideias. Esse capítulo da história, ainda mal escavado e que atravessou gerações em silêncio, é explorado na novela “Júlia, nos campos conflagrados do senhor” (Editora Alameda), livro publicado em 2019 por Bernardo Kucinski. A dedicação do escritor ao tema tem origem na família: Bernardo perdeu a irmã, Ana Kucinski, professora universitária e militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), sequestrada e desaparecida junto com o marido Wilson Silva, em 1974.
“Não é somente um crime de sequestro, essas pessoas perderam suas identidades quando crianças e não sabem mais quem são”, diz Eduardo.
Um país que não conhece sua história está fadado a repetir os erros no futuro – a máxima é uma sombra permanente da democracia brasileira e se reflete na violência materializada na Vala de Perus, revelada há 30 anos em São Paulo, onde foram despejadas clandestinamente 1.049 ossadas de pessoas exumadas entre 1975 e 1976. O material foi analisado pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), dentro da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que encontrou 42 militantes. Além disso, um terço dos restos mortais identificados são de crianças e outro terço de menores de 16 anos, vítimas de assassinatos “comuns” ou doenças como meningite, não enfrentadas pelo Estado.
Embora a última década tenha trazido à tona inúmeras histórias nunca antes contadas, o Brasil segue em dívida com os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura e com sua própria memória. Sem reparação histórica – apurar verdades ou encontrar pessoas desaparecidas, cujas famílias aguardam por respostas -, não há democracia plena. Não olhar para o passado, sequestrando memórias, resulta numa história mal contada, cujos capítulos sombrios seguem sem um devido desfecho.
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Criada pela Lei 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.