Crianças desaparecidas e famílias à espera do reencontro

Seis meses sem saber onde estão Lucas, Alexandre, Fernando e mais de 40 mil crianças e adolescentes que somem por ano no Brasil

Laís Barros Martins Publicado em 24.06.2021
Crianças desaparecidas - Foto em preto e branco de uma mulher sentada num sofá e com as duas mãos apoiando a cabeça enquanto olha para o chão
OUVIR

Resumo

Histórias de desaparecimentos costumam intrigar, mas, com o tempo, são esquecidas. Há seis meses do desaparecimento de Lucas, Alexandre e Fernando, em Belford Roxo, investigamos o tema, num país que soma mais de 40 mil casos de menores de 18 anos desaparecidos por ano.

Três meninos brincam em uma quadra perto de onde moram. Ainda não se sabe por que interromperam a brincadeira e não voltaram para casa. Desde aquele domingo, dia 27 de dezembro de 2020, faz seis meses que Lucas Mateus, 8, Alexandre, 11, e Fernando Henrique, 11, foram desaparecidos.

Nessa suspensão do tempo sem respostas, couberam morosidade da polícia, pistas falsas, ameaças e até extorsão. Diante do descaso e a despeito de as buscas até agora terem sido em vão, há luta contra essa invisibilidade repentina e muitas vezes definitiva do abismo a que estão sujeitas as pessoas que não disseram adeus.

Enquanto somam-se dias de angústia por não saber onde estão, como estão, aqueles que perderam de vista, num lapso de instante comum, é pela expectativa do reencontro que essas famílias se mantêm. Afinal, por trás de cada mistério, há alguém que sabe o que aconteceu.

Jornadas coletivas, mas desiguais

Embora muitas vezes seja interpretado como tragédias individuais, o desaparecimento é um problema de dimensão coletiva estrutural previsto na lei:

Uma pessoa desaparecida é alguém “cujo paradeiro é desconhecido, não importando a causa de seu desaparecimento, até que sua recuperação e identificação tenham sido confirmadas por vias físicas ou científicas” (Lei nº 13.812/2019).

Apesar do tom universal da redação, crianças negras são maioria entre os desaparecidos: só no Estado do Rio de Janeiro, representam 73,18% do total. Em 2021, entre janeiro e maio, dos 1.567 desaparecimentos (incluindo adultos e crianças), 30,44% estão concentrados em municípios da Baixada Fluminense, região onde está localizada a cidade dos meninos, Belford Roxo. (Fontes: Fundação para a Infância e Adolescência – FIA e Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro – ISP).

“Esses territórios têm um legado comum da ditadura militar que deu origem aos grupos de extermínios ou matadores, e às milícias de hoje em dia, cuja técnica de Desaparecimentos Forçados de corpos faz parte da metodologia da produção de morte”, comenta Fransérgio Goulart, historiador e coordenador executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial da Baixada Fluminense.

Em 2006, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. O Brasil assinou-a em 2007 e ratificou-a em 2016, mas até hoje não tem uma política pública para Desaparecimentos Forçados, que é quando há ação ou omissão do Estado.

O historiador evidencia a marca do racismo institucional que perpassa a história dos três meninos desde o início e “é latente em casos de desaparecimentos no Estado do Rio de Janeiro, em especial nesses territórios em que há embate entre polícias e milícias”, diz. “Desde a escuta do Boletim de Ocorrência, em vez de começar prontamente as investigações, há todo um processo de criminalização contra a vítima desaparecida ou o familiar, na maioria mães negras, moradoras de favelas. O racismo impera em frases do tipo: “Seu filho não era envolvido com tráfico de drogas?”, “Não fazia coisas ilegais?”.

Gislaine Kepe, defensora pública do Estado do Rio de Janeiro e responsável pelo caso dos meninos, concorda que “a culpabilização das famílias fica evidente na análise dos inquéritos policiais, ao serem questionadas sobre sua religião (ou a ausência de) e seus hábitos, sobre onde estavam e o que faziam ao tempo do desaparecimento e outras questões que nem sempre interessam à investigação, numa perspectiva que parece atribuir a culpa do desaparecimento a algum tipo de omissão ou negligência dos responsáveis pela criança ou adolescente. É uma lógica violadora de direitos, que revitimiza o interessado nas buscas, pontua.

Além disso, ao procurarem ajuda, as famílias dos meninos de Belford Roxo, como tantas outras, foram instruídas a esperar. Mas não é necessário qualquer prazo para registrar a ocorrência. Aguardar – 24, 48 ou até mesmo 72 horas – é uma violação. Quando se percebe que o menor de idade sumiu e está incomunicável, deve-se procurar a delegacia mais próxima e abrir um B.O. A busca deve ser imediata, em caráter de urgência, pois as primeiras horas costumam ser fundamentais para solucionar esses casos. É um direito das famílias, e é dever da polícia fazer isso.

Há 180 dias do desaparecimento de Lucas, Alexandre e Fernando, Gislaine comenta que “as investigações ainda não possuem uma linha, tendo em vista que nenhuma hipótese foi descartada até hoje”. Segundo ela, a Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense “vem, incessantemente, realizando diligências em busca de informações que possam levar ao paradeiro dos meninos e sendo receptiva às demandas da Defensoria Pública, que patrocina os interesses dos familiares”.

Ausências inexplicadas e um tempo feito de esperas

À semelhança de um luto que nunca se realiza, o desaparecimento não autoriza a seguir adiante sem saber o que aconteceu e sem desejar, a cada dia, a volta dessas pessoas queridas.

No Brasil, segundo medição feita em parceria com os estados e o Distrito Federal, foram 79.839 pessoas dadas como desaparecidas, em 2019. De acordo com levantamento feito em 1999, quando eram 200 mil pessoas desaparecidas por ano, estimou-se a média de 40 mil crianças e jovens menores de 18 anos – cerca de 115,9 casos por dia (Fontes: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, Ministério da Justiça e Movimento Nacional de Direitos Humanos).

Apesar de altos, Claudia Figaro-Garcia considera que os números podem estar subestimados, e não se pode precisar quantos casos foram ou não solucionados. Claudia é psicanalista do projeto Caminho de volta, ligado à Universidade de São Paulo, que, além de serviços psicossociais, envolve as áreas de biologia molecular, genética e bioinformática para a elucidação de casos de crianças e adolescentes desaparecidos no Estado de São Paulo.

“Além de um cadastro com informações sobre o histórico familiar, o histórico do desaparecido e as circunstâncias do desaparecimento, é feita a coleta de sangue e saliva para que se compare os perfis genéticos dos familiares com os perfis genéticos dos desaparecidos encontrados, a menos que não seja possível a sua identificação em decorrência do tempo do desaparecimento, ou se tratarem de cadáveres sem identificação, ossadas, restos humanos, ou crianças/adolescentes abrigadas sem identificação de parentesco ou de quem são seus responsáveis”, conta Claudia. Se o desaparecido for encontrado e voltar para casa, ele também é entrevistado e as informações cadastrais são atualizadas.

Entre as estatísticas, está a história de Luciane, uma garota de 9 anos eufórica por ser tia pela primeira vez. O sobrinho recém-nascido tinha passado a noite em sua casa. Na manhã de domingo, ela tomou banho, se arrumou toda de rosa, e foi à padaria. Diante da demora de Luciane, a família saiu ao seu encontro. Ela havia desaparecido.

Um vizinho a viu atravessando a rua com um homem grisalho, de bicicleta. Ele usava boné, camiseta verde com um leão na frente e calça jeans. Outras testemunhas viram a menina, que chorava muito, mas tinha as lágrimas secas por esse homem que dizia ser seu pai. Ela contestava, mas ninguém impediu o homem de seguir.

Foto de Luciane Torres da Silva. Na imagem, há o texto Luciane Torres da Silva, 9 anos. Foi à padaria num domingo e não voltou para casa. Desaparecida desde 30 de agosto de 2009, no município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. Tem hoje 21 anos.

“Já são 12 anos dessa tortura”, diz a mãe, Luciene Pimenta Torres. “As investigações foram encerradas, mas o caso segue sem arquivar, porque a história não tem resposta. Só posso reabri-lo se houver mais provas. Eu que tenho que procurar?”, questiona-se.

“Hoje não procuro mais um rostinho de nove anos. Meu maior medo é passar do lado na rua e não reconhecer, não saber mais quem é a minha filha. Conto com o olhar das pessoas, alguém que pode achar que é parecida e encontrá-la”, diz. Luciene também se pergunta o que será que a filha fez para sobreviver a isso tudo. “Se para mim foi difícil, imagina para ela”, reflete.

“São anos que tiram da gente. Quem vai me devolver isso?”

Sobre a transformação dos sentimentos ao longo dos anos, a mãe diz que ia dormir pensando “‘eu não fiz tudo’. Mas ou a gente levanta e luta, ou a gente se entrega e morre”. Junto de outras mães, Luciene criou a ONG Mães Virtuosas do Brasil, cujo foco é apoiar as famílias com informação e emocionalmente. “Muita gente faz o B.O., leva para dentro de casa, enfia numa gaveta e fica esperando. Desestruturadas, essas famílias precisam prestar atenção nos outros filhos e familiares, sem esquecer o filho que sumiu. Se não, eles acabam ‘desaparecidos’ também”, alerta.

Todos são afetados pelo ocorrido”, comenta a psicanalista Claudia Figaro-Garcia. Ela aconselha “não viver somente com a dor da perda”. Para ajudar a atravessar esse momento, “é fundamental procurar ajuda psicológica, de modo individual ou participando de grupos de pessoas que estão passando pelo mesmo problema”.

Entre as circunstâncias mais comuns de desaparecimentos, voluntários ou involuntários, estão: assalto, homicídio, sequestro, adoção ilegal, migração, trabalho escravo doméstico, abuso e exploração sexual, tráfico de pessoas e tráfico de órgãos, além de conflitos familiares, consumo de drogas e problemas de saúde mental. “O desaparecimento de bebês ou crianças pequenas geralmente é ocasionado pelo crime de subtração de incapaz, ou seja, quando ele é levado por pessoa desconhecida ou conhecida, sem autorização ou ciência dos familiares. Na adolescência, as fugas de casa são o principal tipo de desaparecimento e os conflitos familiares acabam permeando a maioria dos casos”, diz Claudia.

Um dia, ao invés de ir para a escola, Joice resolveu fugir. Ela tinha 14 anos e vivia questões familiares conturbadas, a mãe era vítima de uma relação abusiva. Depois de ter passado um tempo morando na rua, Joice foi abrigada por uma família. Cinco meses depois, diante da intensa busca da mãe, que divulgou fotos e deu entrevistas à sua procura, alguém denunciou onde ela estava.

Hoje, aos 24 anos, Joice lembra a adolescente tímida e calada que foi. “Não tinha muito diálogo com os meus pais. Achava que eu atrapalhava, que eu era um peso, que não era querida, não era importante, mas não falava o que eu sentia”, conta. “Pensei que se fosse embora, meus pais iam ficar bem. Sem ter para onde ir, saí de casa levando algumas roupas e decidida a não voltar. Achava que ia conseguir me manter, que ia ganhar o mundo, que era forte.”

“Eu estava me sentindo tão sufocada que preferi ir embora”

“Durante o período que vivi nas ruas, passei fome, mas não sofri nenhum tipo de violência. Pelo contrário, encontrei pessoas que me ajudaram. Eu até pensava em retornar, mas tinha muito medo da reação dos meus pais”, diz.

A mãe, Neli Adriana, acredita que isso teve que acontecer para que ela mudasse sua história de vida. “Comecei a priorizar minha família, quebrei aquele ciclo de opressão e me dediquei a reestruturar o psicológico dos meus três filhos, principalmente o da Joice”, conta.

Foto de Joice Adriana Martins da Silva. Na imagem, há o texto: Joice Adriana Martins da Silva desapareceu aos 14 anos. Saiu para ir à escola no dia 7 de junho de 2011, no Rio de Janeiro, e não voltou para casa. Foi encontrada cinco meses depois. Tem hoje 24 anos e é mãe de Isabella, de 2 meses.

Para Clarice Barbosa, que está à frente do Movimento Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas e Vítimas de Violência, “é muito difícil trabalhar a questão do desaparecimento. Às vezes, as famílias não contam a verdade, por medo ou vergonha. O que acontece do portão para dentro, a gente não tem como saber”.

Onde falhamos ao não encontrar essas crianças?

Especialistas indicam a urgência de criar um cadastro nacional de pessoas desaparecidas unificado e constantemente atualizado. “Utilizamos bancos para cruzar dados de pessoas desaparecidas e encontradas. Mas, de modo geral, esses sistemas não conversam entre si”, confessa Claudia. Além de serem necessárias mais delegacias especializadas, principalmente para desaparecidos menores de 18 anos – na cidade de São Paulo, por exemplo, há apenas uma delegacia com um efetivo pequeno de investigadores para dar conta do número de casos de pessoas desaparecidas -, Claudia sente falta de “um trabalho em rede mais consistente entre delegacias, secretarias de segurança pública, hospitais, institutos médicos legais, abrigos e escolas”, de modo a otimizar a investigação desses casos.

O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, que dá suporte à Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, previa cooperação operacional e técnica com os estados e demais entes federados, mas é mais um dos numerosos cadastros instituídos com a mesma finalidade”, critica Gislaine. “O grande entrave é a articulação das informações que poderiam levar ao paradeiro de pessoas desaparecidas e que estão pulverizadas em diversos bancos de dados públicos e privados no país”, diz.

Com o auxílio de um algoritmo que compara informações disponíveis (registros de ocorrência, entrada no sistema de saúde, assistência, sistema prisional, características físicas das pessoas desaparecidas, fotografias e retratos envelhecidos, contatos de interessados, informações genéticas e não-genéticas), o Sinalid (Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos) já levou à solução de 10.082 casos de desaparecimentos, até junho de 2020.

Para Claudia, “a prevenção deve ser considerada política pública”. Além de campanhas que esclareçam “o que é o desaparecimento, em que circunstâncias ele pode ocorrer e suas consequências, o projeto Caminho de volta também tratou do desaparecimento de crianças com deficiência, que estão muito mais vulneráveis a sofrerem violência por não conseguirem se defender ou se comunicar, e crianças adotadas, que não podem se beneficiar dos bancos de DNA por não terem consanguinidade com os pais adotivos”, lembra.

Além de prejuízos incalculáveis aos afetos e diante do rumo alterado de tantas histórias, famílias de pessoas desaparecidas, incluindo-se crianças e adolescentes, clamam pela eliminação do incômodo ponto de interrogação colocado em suas narrativas de vida para que consigam escrever um novo capítulo, de preferência junto dos filhos retornados à casa.

Naquela mesa
tá faltando ele
e a saudade dele
tá doendo em mim

música de Sérgio Bittencourt

O fenômeno do desaparecimento civil é um tipo de ocorrência policial que deve ser investigado, embora não consista, necessariamente, em crime (Fonte: ‘Apenas preencher papel’: reflexões sobre registros policiais de desaparecimento de pessoa e outros documentos, de Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira). À mercê das investigações, muitas famílias costumam assumir a procura por seus filhos e filhas, na esperança do reencontro.

Se você tem alguma informação que possa beneficiar essas investigações, ligue para 181 (Disque Denúncia) ou 190 (Polícia).

Leia mais

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS