O papel das crianças na história e na continuidade de uma tradição que veio com os africanos escravizados e hoje é patrimônio cultural imaterial de Minas
O Congado, uma das maiores representações culturais de Minas Gerais, é reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Estado. Como as crianças se relacionam com a tradição e dão continuidade à festa?
Dançar! Uma das primeiras imagens que vem à mente quando lembramos as festas de Congado guarda estreita relação com o significado do termo “congo”: congar ou dançar. Esta manifestação cultural religiosa, que começou no século 17, é originária dos povos africanos que foram escravizados no Brasil. Era através da dança que eles celebravam momentos como o nascimento de um príncipe, a boa colheita ou visitas de pessoas de outros territórios.
Apesar de ser um festejo popular presente em várias localidades do Brasil, como Bahia, Espírito Santo e Goiás, Minas Gerais tem a maior concentração de congadeiros do país, o que em breve poderá ser comprovado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG), que iniciou um cadastro para reconhecer reinados e congados como patrimônio cultural Imaterial do Estado. O objetivo é identificar informações como localização, formas de organização, diversidade de cargos e funções, indumentárias, instrumentos musicais e calendários festivos, bem como levantar dados sobre as dificuldades relacionadas à manutenção dos grupos, visando sua preservação.
“Eu era só um menino quando vi nascer o divino. Eu era só um menino quando vi nascer o divino. Quanto tempo que passou, essa guarda caminhou. A mamãe do Rosário com o seu manto abençoou…” – Marcha de Congado
Apesar da grandeza e expressividade do Congado em alimentar a sua fé e resistência através do Rosário de Maria, por meio de cantos, danças e ritos como forma de comunicação espiritual, ainda há desconhecimento e preconceito.
Para Gleisson Rodrigues, capitão-mor (termo usado para nomear os comandantes/líderes) da Guarda da Urca Pampulha de Belo Horizonte, tal como outras manifestações de matriz africana, o Congado ainda é muito atacado pelo simples fato de sua origem ser negra. “O preconceito religioso é um problema. A sociedade se formou acreditando que atividades ligadas a religiões africanas significam algo ruim. Por isso, pouco a pouco, o número de colaboradores vai diminuindo e aumentando a dificuldade em manter a tradição”, relata.
A guarda da Urca Pampulha chegou a quase ser extinta, ficando com apenas sete participantes. Atualmente, está em processo de adaptação, unindo 58 pessoas que esperam voltar aos cortejos tradicionais.
A situação acende a preocupação em como passar o bastão entre gerações para preservar essa tradição e suas raízes ancestrais às crianças e jovens de famílias congadeiras. “A continuidade se dá através da herança imaterial passada do mais velho para o mais novo. Desta forma, as crianças são inseridas, desde o nascimento, aos ritos do Congado”, explica Gleisson.
“No Congado, as crianças aprendem sobre o respeito à origem de sua tradição e, acima de tudo, sobre igualdade racial. Não somos maiores nem menores do que ninguém”
Todas as religiões, crenças, pessoas de todas as raças e cores são bem-vindas. A vivência da fé, o respeito e o comprometimento fraterno podem ser vistos não somente nas festas específicas do Congado, mas nas atividades cotidianas de quem segue essa tradição. Como no Natal, Dia das Crianças, festa de Cosme e Damião, terço dos homens, entre outros encontros abertos a toda comunidade.
Zilda Pereira, 72, começou no Congado quando tinha apenas 3 anos e hoje é capitã da Guarda de Congo Feminina de Nossa Senhora do Rosário, que existe há 48 anos no bairro Aparecida, em Belo Horizonte. Sua família foi pioneira no protagonismo feminino do Congado.
Antes, o Congado era formado apenas por homens e as mulheres não podiam dançar – apenas as rainhas e princesas assistiam à festa. Com o falecimento de alguns homens, a mãe de Zilda foi a primeira bandereira (aquela que carrega a bandeira) e convocou outras meninas e mulheres para participarem, formando a primeira Guarda Feminina do Estado de Minas Gerais, que hoje conta com aproximadamente 50 integrantes.
Rainhas e princesas são aquelas que geralmente seguem o caminho dos pais. Hoje, podem ser mulheres – ou meninas – que demonstram interesse pela função ou desejam pagar alguma promessa ao entrarem para o Congado, passando antes por um processo de aprendizado sobre comportamento, fé e oração até serem coroadas.
Damos graças a Deus quando as meninas participam com a gente e seguem essa missão”, diz Zilda, que já vê sua família formar a quinta geração do Congado. Para ela, o Congado não pode ser algo obrigado, mas ser um dom ou vir do coração.
“É uma raiz que os nossos pais nos deixaram e que não podemos deixar morrer”
Wendell Rodrigues, caixeiro de guia (aquele que guia e vai na frente do cortejo, puxando, por exemplo, o batido dos tambores), que nas horas vagas diz arriscar-se como capitão, é um exemplo de quem iniciou no Congado desde o ventre da mãe. Integrante da Irmandade Os Carolinos, uma das mais antigas de Belo Horizonte, fundada em 1917, ele conta que desde criança aprende com a convivência com os mais velhos, com quem aprendeu a dançar e a tocar instrumentos como caixa, pandeiro e tambor.
Campanha é o apelido dado para a gunga, um instrumento musical que representa as correntes que prendiam os pés dos escravizados para que, ao fugirem, serem facilmente descobertos devido ao som que emitiam. Hoje, o instrumento representa liberdade e identidade, símbolo de cultura e orgulho.
“A maioria de nós já nasce dentro do Congado. Tem sangue congadeiro! Então, já temos um talento natural para a ‘coisa’”, explica Wendell. Aos 24 anos, ele ressalta orgulhoso que o bisavô de sua avó foi quem fundou os Carolinos, mostrando quantas gerações de sua família seguem louvando a tradição de Nossa Senhora do Rosário, os santos pretos, os ancestrais e os reinos africanos.
Há crianças que não são obrigatoriamente de famílias congadeiras e despertam interesse natural pela tradição, após, por exemplo, participarem de festejos abertos a toda comunidade como a festa de Cosme e Damião ou o próprio Natal, quando campanhas arrecadam brinquedos, doces e balas a serem doados.
“A parte mais importante aqui do Congado é a Nossa Senhora do Rosário que me ensina a ter fé, confiança e sempre acreditar em Deus. O Congado é como se fosse uma banda inteira, só que de caixeiros e mulheres. É como se fosse uma fonte de esperança criada por Deus. Minha mãe me trouxe para conhecer o Congado antes mesmo dos 4 anos. Eu gostei e quis participar”, conta Gabriel, 9, o mais jovem “capitãozinho”, já consagrado como Capitão da Guarda em uma celebração em Aparecida do Norte (SP). Sua família não era congadeira. Apenas a mãe que, desde criança, assistia aos cortejos e celebrações de Congado no seu bairro, e quis estender a paixão aos filhos.
“Ser capitão é bem legal. A gente pode conduzir a guarda e ficar no meio cantando. Estou esperando a minha espada que serve para proteção e me ajuda nas coreografias. Vou continuar no Congado, pois não posso perder a esperança na Nossa Senhora do Rosário”, completa o capitãozinho.
Para a jornalista e antropóloga Bárbara Altivo, autora da tese “Rosário dos Kamburekos”, viver o Congado em comunidade é um processo contínuo de ensinamentos intergeracionais. Os mais velhos são os guardiões dos saberes e fazeres ancestrais, a fonte viva de conhecimento que conduz a vida sociopolítica e espiritual na tradição congadeira. Segundo ela, conforme ensinam as orações, os toques, os cantos e as danças de devoção ao Rosário, anciãos e anciãs transmitem as memórias dos povos negros no Brasil, as suas lutas e experiências com o sagrado para crianças e jovens das guardas.
“É no próprio ritual que o conhecimento se propaga e os mais novos podem aprender, na prática, os fundamentos do Congado. Saber e fazer são processos que não se separam no universo congadeiro”, explica a pesquisadora.
“Os mais velhos também podem aprender com meninas e meninos sobre a fé despida de instituições adultas, a corporalidade lúdica e a intensa conexão com o universo misterioso dos seres espirituais que vibram no Congado”
Janine Layane, 16, que desde pequena participa da Irmandade Os Carolinos, considera o Congado “a coisa mais importante da vida, minha segunda família e até mesmo o refúgio dos meus problemas. O som do tambor me dá uma energia muito boa, é o melhor sentimento do mundo”, revela. A jovem explica que foi somente no Congado que ela conseguiu entender a importância da união e do amor entre irmãos e amigos, e até mesmo ter mais fé no Rosário de Maria.
Bruno, 9 – Guarda de São Bartolomeu no Bairro Concórdia
“Desde os 6 anos estou no Congado e hoje acho ótimo para a gente sair para respirar. Toco a caixa e o xique-xique no pé. Meu avô foi capitão do Congado, a avó foi rainha e minha mãe é dançante”
Allanderson, 6 – Guarda Moçambique do Divino Espírito Santo
“Quero uma campanha (referindo-se à gunga) bem grandona, pois a minha está pequena já e nem sai barulho direito. A minha roupa ficou curta e vou ter que dar um jeito nisso! Também não deixo ninguém pegar o meu bastão”
Evelyn, 8 – Guarda Moçambique do Divino Espírito Santo
“Moçambique para mim é uma raiz, porque minha avó foi capitã da Guarda de Congo e meu irmão era capitão. Eu aprendi muitas coisas lá, aprendi a ter fé, a respeitar os mais velhos”
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