Proteger as crianças ao máximo da história mais macabra, para a qual elas não estão definitivamente preparadas
Quais são as palavras a serem usadas com crianças, para desenhar o medo que os adultos não são capazes de extinguir? Confira a reflexão do psicólogo Alexandre Coimbra Amaral.
Nas últimas semanas eu estive afastado daqui, desta coluna que tanto me rende afeto, encontros, comentários e prazer em escrever. Não eram os habituais discursos paulistanos de falta de tempo, vida corrida e congêneres. Estava eu, um psicólogo, me habituando a novas formas de sofrimento coletivo, que me chegavam aos borbotões no consultório, nos grupos terapêuticos que coordeno, nas conversas cotidianas por escrito ou por voz ou por presença, aquela típica do século passado, mas que tanta falta faz à alma de qualquer tempo.
Eu sublinho o psicólogo aqui, porque é nesta categoria que sempre sou convocado a pronunciar-me, pública ou privadamente. E um psicólogo, entendo eu desta forma, é habitante de um determinado mundo, de uma cultura que se movimenta e se transforma. Precisa sentir, entender melhor as direções e os sentidos das mutações do espaço. Precisa entender para que lado o mundo gira, e as interferências deste volteio na saúde mental das pessoas.
Pois.
Passei este tempo sem escrever, tentando entender um pouco melhor o sofrimento que passa a fazer parte da vida mais ordinária. São tempos novos, difíceis para muitos, invisíveis para alguns milhares que parecem não querer ver. Há uma nova ordem social querendo chegar para ocupar o tecido da sociedade, rasgando uma parte dele com uma raiva que antes estava oculta, encoberta, protegida por alguma camada de censura interna. Esta censura interna, que é a base de qualquer civilização, é o que está sendo posto em questão.
Estamos sendo convidados, como pessoas habitantes de um mundo coletivo, a pensar, sentir, dizer e fazer aquilo que nossos impulsos mais bestiais nos convidam a ser. A ilusão destes dias é dizer que isto é ser livre. E, sartrianamente, podemos garantir que estamos entrando na mais nova das gaiolas humanas, na prisão da falsa liberdade de expressão.
Não existe liberdade em nenhum ambiente que, para um ser livre, o outro se sinta oprimido. É o avesso do avesso do avesso do avesso de qualquer tipo de asa. Quando eu digo ou faço algo que oprime alguém, esta minha ação é o início de um jogo de dominós que nem percebemos bem, mas que fazem um e outro e outro e outro momento violento acontecerem diante de nossos olhos.
Ser violento com um humano é permitir que o mundo seja assim, e dar o início a uma bomba-relógio microscópica que, em progressão geométrica, toma a dimensão de um godzilla incontrolável. A necessidade humana mais básica da vida em sociedade é que cada um cuide de seus impulsos violentos, entendendo as suas motivações e os riscos deles invadirem qualquer outro, para o benefício coletivo de uma vida mais pacífica.
Quando eu transgrido este pacto de não-violência, eu inicio e autorizo uma cadeia de ações intempestivas à minha volta.
Eu ensino com o exemplo de quem eu sou, nas minhas vísceras. O que eu faço fala tão alto, que aquilo que eu falo ninguém escuta. Não importa se eu me defina como uma pessoa de bem. As idéias não correspondem aos fatos, já que eu deixo os ratos dos porões internos encherem as piscinas do meu coração.
O novo sofrimento social brasileiro é o medo da violência que começa a ser gerada nos porões internos que antes estavam contidos com alguma interdição. O medo daquela pessoa normal, gente como a gente, que frequentava a mesa da cozinha e as celebrações da firma, que se sente autorizada a proferir palavras que ferem. Pessoas que amamos sendo porta-vozes de palavras e atitudes preconceituosas. Pessoas que não se sentem mais na obrigação de conter os impulsos violentos que estavam minimamente fechados no fundo mais sombrio de si.
O medo que toma conta da vida atual no Brasil é o contrário do abraço coletivo, da esperança no humano. Por isso é tão dilacerante, porque é um luto da paz de poder se sentir entre pares. É uma experiência de choque de realidade misturada com as piores fantasias infantis. Há algo de real e algo de fantástico nesta experiência: como eu não posso sentir muito bem qual é a dimensão do que se avizinha, eu recorro às imagens antigas das bruxas que viram poderosos dragões num passe de mágica cruel.
Pode ser que os medos sejam imaginários na sua grandiosidade – o medo tem um fermento especial na sua composição que faz com que seja um bolo que sempre desanda, entornando suas fronteiras para todo o nosso corpo e alma. Pode ser sim que alguns exagerem seus medos.
Mas há outros medos que já são parte de uma experiência vivida, de cicatrizes recentes. Pessoas que andam ameaçadas por discursos de ódio e morte. Grupos que estão severamente ameaçados, sendo retaliados, sofrendo um tipo de violência que deveria fazer parte de um passado, e que no entanto retorna como um fantasma do presente, assombrando o futuro incerto.
É com estes medos que eu tenho conversado ultimamente. É destas novas histórias que estou tratando de aprender a cuidar, já que se inscrevem numa triste novidade para a vida brasileira. Entre as pessoas que conversam sobre seus medos, estão mães e pais, que estão em silêncio interno, tentando compreender como lidarão com os filhos em um contexto tão desafiador.
Quais são as palavras a serem usadas com crianças, para desenhar o medo que os adultos não são capazes de extinguir? Quais são as formas de protegê-los, sem que isto se transforme num cárcere privado para as infâncias que pedem expansão, criatividade, beleza e confiança no humano?
É válido assumir que temos medo, que ele é uma emoção humana, e que tem tomado conta de nossas almas muito mais frequentemente que em tempos anteriores?
As respostas estão ainda em suspensão, dada a pouca longevidade da experiência e a necessidade de sentir melhor o que o medo quer dizer sobre cada um de nós, sobre os casamentos, as famílias, as instituições sociais, os diversos agrupamentos humanos. É hora de ver o que andamos sentindo, muito provavelmente deixando algumas perguntas das crianças sem resposta.
Enquanto não há certezas, o abraço e a conexão com o amor que nos une a elas continua sendo a melhor alternativa.
Enquanto não saibamos o que seremos e como viveremos depois das permissões para os ódios, vale a pena alguma forma de aquietação, de parênteses.
Conversar com quem esteja sentindo parecido, chorar as tristezas que chegam junto com o medo, as raivas que também se destapam no maior dos monges budistas. Buscar emparelhar-se de falas que não deixem respostas fáceis de livros de autoajuda.
Proteger as crianças ao máximo da história mais macabra, para a qual elas não estão definitivamente preparadas.
Deixá-las certas de que há momentos da vida em que a dúvida pode existir, e que é parte da vida e da necessidade de se haver com um tanto de angústia de existir.
Mas, sobretudo, amar, abraçar, beijar, falar do amor por elas.
Em algum nível, continuaremos sendo seus portos seguros, ainda que com um coração que bate de forma descompassada olhando para o porvir. Num terremoto, adultos e crianças têm os corpos vítimas da força tectônica, e ainda assim podem ser anteparo e proteção. Não é necessário que estejamos impávidos e colossos para sermos o ninho das crianças. É preciso querer sê-lo, ofertar o que de melhor podemos entregar-lhes, porque este melhor sempre será apenas o possível, e jamais o ideal.
Em tempos de terremotos de medo, tristeza e raiva, os abraços às nossas crianças são trêmulos. Juntos, imersos em palavras e atos de amor, podemos restabelecer a calma.
Porque alma rima com calma.
E duas almas que se reconhecem, se encontram e se acalentam, encontram um fio indecifrável de alento, só explicado pela palavra mais sagrada e mais gasta de nossas vidas: o amor.
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