Embora a internet seja fundamental para o exercício da cidadania, 5 milhões de crianças e adolescentes não acessam esse direito; conheça algumas histórias
Mais de 5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros não têm acesso à internet, uma das garantias do exercício pleno da cidadania. Crianças que vivem o mundo mais desconectadas compartilham suas experiências com o Lunetas.
“Como funciona a internet?” Algumas crianças não hesitam em responder, ainda que desconheçam a engenharia por trás dos fios ou a ciência da programação de dados. Outras, diante do esforço, paralisam. Quando pensamos em infância e ambiente digital, as discussões que vêm à mente geralmente são tempo de exposição a telas, qualidade dos conteúdos consumidos ou o medo de uso impróprio de dados e informações de crianças e adolescentes. Enquanto há famílias preocupadas com o excesso, outras convivem com a falta. Para muitas crianças, ter um computador, um celular ou acesso à internet de boa qualidade em casa ainda não é uma realidade.
O mundo digital não existe da mesma forma para todas as infâncias. No Brasil, 20 milhões de domicílios não têm internet, de acordo com dados da pesquisa TIC Domicílios 2019, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Dados preliminares do levantamento mais recente apontam que quase 5 milhões de crianças e adolescentes, entre 9 e 17 anos, vivem em domicílios sem acesso à internet no país. A exclusão é maior entre moradores das áreas rurais, das regiões Norte e Nordeste, e das classes D e E.
Embora ter internet seja considerado fundamental para o exercício pleno da cidadania – o direito ao acesso universal está previsto, inclusive, na lei 12.965/2014, o Marco Civil da Internet -, a questão vai além da dualidade entre ter ou não ter. Entre os “conectados”, por exemplo, há aqueles apenas com conexão móvel, plano pré-pago ou uso limitado de dados por aplicativos. Diferente de quando as relações físicas predominavam, hoje ter acesso à internet significa garantir direitos básicos como retirar documentos, dialogar com serviços públicos, trabalhar e participar da vida cívica.
“Não dá mais para falar de conexão/desconexão, é preciso falar da conexão integral à web. Não é possível imaginar crianças assistindo aula on-line, por exemplo, com dados de uma conexão pré-paga”
Essas são palavras da advogada Marina Pita, coordenadora do Coletivo Intervozes. Ela explica como as desigualdades no mundo digital são múltiplas, começando pelo tipo de dispositivo utilizado. “Nas classes D e E, só 14% dos domicílios brasileiros têm computador. Todos os recursos que a internet oferece – como fazer uma pesquisa, um texto, mexer em uma planilha – serão usados de forma diferente pela criança se ela tem apenas um celular”, afirma.
Com a velocidade de renovação das tecnologias, a relação também muda dependendo do tipo de dispositivo ao qual a criança tem acesso: existem os celulares mais modernos, que permitem instalar vários aplicativos, mas há aqueles com sistema operacional antigo, que não suportam algumas tarefas ou descarregam rápido.
Se antes a divisão entre ter e não ter conexão dava conta de evidenciar as desigualdades de acesso às tecnologias, agora o cenário é tão complexo que a discussão se tornou ultrapassada. A própria incorporação da internet nas atividades de rotina torna urgente pensar na qualidade das conexões existentes.
Para as crianças durante a pandemia de Covid-19, o acesso a uma boa internet significa garantir a continuidade da educação escolar, conversar com familiares que moram longe, realizar pesquisas e reencontrar os amigos virtualmente. “Como a internet é essencial hoje, a desigualdade é mais grave”, ressalta a advogada.
No Brasil, os instrumentos legais para o avanço da conexão estão limitados à banda larga móvel e praticamente inexistem em relação à banda larga fixa. O país apostou em políticas públicas para ampliar a cobertura, contudo os custos são mais caros e a conexão mais instável. Assim, a desigualdade no acesso à internet é reflexo da desigualdade social brasileira, o que pode comprometer o desenvolvimento infantil das populações em situação de vulnerabilidade. Para Marina,
“A internet pode permitir o acesso a bens culturais. Pessoas com esses dispositivos, desde cedo, terão vantagens como a possibilidade de explorar esse ambiente. Podemos fazer um paralelo com o brincar livre. Isso é muito potente”
Quando conversamos com crianças de várias partes do Brasil, percebemos que ter acesso a dispositivos e conexões influencia na visão de mundo delas. As crianças expressam o desejo de se sentir parte do ambiente digital e o consideram ferramenta importante para a educação e para estar em contato com outras pessoas e realidades. Ninguém quer ficar fora da internet, ainda que ela seja limitada.