Experiências buscam troca de conhecimento e ajuda mútua entre crianças de diferentes níveis de escolaridade, em uma mesma sala de aula
Misturar crianças de diferentes idades e níveis de escolaridade pode ser um desafio. Algumas escolas têm apostado nessa proposta, reforçando o papel da diversidade e da interação no processo de aprendizagem coletiva. Conheça as experiências de classes multisseriadas.
Edjane de Souza Andrade é professora no povoada de Tapera, em Monte Santo, sertão da Bahia. Sua rotina exige criatividade e, muitas vezes, desafiar cartilhas didáticas para ensinar 15 crianças de seis a nove anos, em classes multisseriadas. É a proposta da escola municipal Laurentino Silva, que trabalha com 110 alunos matriculados, entre a pré-escola e o 5º ano do Ensino Fundamental, divididos em seis turmas mistas.
As classes multisseriadas possuem condições de ensino diferentes das encontradas nas salas de aula padrão, já que se caracterizam por agrupar alunos que estão cursando diferentes séries ou anos de sua escolaridade, sob responsabilidade de um mesmo professor. Bastante presentes na zona rural, estão presentes sobretudo em áreas de difícil acesso, já que algumas escolas têm um número pequeno de matrículas e a mudança para outras escolas nem sempre é possível, pela distância.
Enquanto alguns profissionais preferem planejar atividades diferentes para cada idade, outros buscam aproveitar as oportunidades da diversidade para incentivar a troca de conhecimentos e a aprendizagem mútua.
“As vantagens de se trabalhar com classes multisseriadas, no meio rural, são as trocas de experiência e discussões, pois possibilitam maior socialização de ensino e aprendizagem entre alunos e com professores”, defende Edjane.
Ao mesmo tempo, de acordo com a professora, cada faixa etária exige uma atenção especial e a diferença de interesse por parte dos alunos é equilibrada a partir de atividades lúdicas, para que todos se sintam à vontade na escola. Por isso um dos pilares de ensino é a parceria com as famílias, que visitam a escola e auxiliam nos exercícios para casa, sempre colocando em perspectiva na sala de aula aquilo que é vivenciado pelos alunos. “Ele integrem, falam de experiências vistas e vividas na família, na comunidade, na escola”, diz.
A realidade vivida pelos estudantes é a base para facilitar a aprendizagem”, destaca a professora.
Produções artísticas com base em datas comemorativas nacionais e locais, pesquisas sobre a história da comunidade, interpretações de músicas, construção de rimas e bingos de leitura estão entre as atividades propostas por Edjane, que têm incentivado os estudos e trazido bons resultados. Mas quando se junta crianças de várias idades, com diferentes níveis de escolaridade, nem sempre aqueles que estão mais avançados em alguns conteúdos terão paciência de esperar os outros. Nesse sentido, segundo ela, alguns momentos passam a ser mais desafiadores, como o caso de aulas de matemática.
A coleção Classes Multisseriadas em Escolas do Campo, organizada pela Fundação Telefônica, apresenta diversas propostas pedagógicas a partir de relatos de experiências em várias regiões do país, que ajudam a compreender a dinâmica de aprendizagem no dia a dia escolar. O conteúdo pode servir de inspiração para educadores e profissionais lançados ao desafio de se trabalhar em salas com esse perfil. Em um caderno da coleção voltado à matemática, as atividades relatadas apostam em jogos e brincadeiras interativas, que servem como instrumentos capazes de propor problemas matemáticos, promovendo entre as crianças de várias idades o encontro de distintos pontos de suas escolaridades e saberes.
“Do ponto de vista da matemática, o contexto de compra e venda (que envolve pagamentos e trocos) é um meio propício para propor diferentes tipos de problemas, envolvendo as operações básicas para as crianças dos anos iniciais, situações de proporcionalidade para os alunos dos anos intermediários e aspectos mais complexos, como as compras a prazo com porcentagens de juros ou de desconto para os alunos dos anos mais avançados”, exemplifica Priscila Monteiro, autora do material.
Em uma classe multisseriada do interior de São Paulo professores mostram como explorar unidades de medida a partir da organização de uma vendinha com embalagens vazias de diferentes produtos: as crianças usam reproduções de notas e moedas vigentes no país para realizar suas compras. Os alunos mais novos pedem ajuda a outros mais experientes para ações como controle de pagamentos, cálculo de trocos e relatório de produtos vendidos no dia. Ao longo da brincadeira, o professor cria um “banco”, sob a responsabilidade dos alunos, para trocar notas maiores pelo valor exato dos produtos – por exemplo quando o preço é R$ 4,75 e alguém só possui nota de 10 reais.
No caso de adaptações para especificidades de uma região, uma opção seria organizar feiras, explorando unidades de medidas locais como litro de farinha, cuia, bacia, maço e analisar as equivalências com as unidades de medidas convencionais. Para entender se bacias apresentam a mesma quantidade ou se um litro de farinha corresponde ao mesmo que um quilo, as crianças precisarão se envolver em pesquisas sobre as medidas utilizadas em sua região e em atividades de mediação para comparar resultados.
Nessa perspectiva, por meio das propostas pedagógicas apresentadas pelos cadernos da coleção Classes Multisseriadas em Escolas do Campo, é possível notar que o professor passa de transmissor para facilitador do conhecimento. Não se trata de apresentar um problema seguido de sua respectiva resolução e exercícios semelhantes. As dinâmicas interativas partem da solução de um problema para estimular um pensamento matemático, que pode ser construído durante a troca de saberes.
Outra situação que pode ser entendida como ponto de encontro entre saberes de diferentes idades é a leitura. Mariana Alves, professora de uma classe multisseriada na periferia de Curitiba, propôs aos alunos que trocassem cartas entre si, a partir de um sorteio. Ela conta que ao ler as mensagens uns dos outros, eles tiveram dificuldade de compreender a caligrafia e identificaram muitos erros de ortografia, mas, ao mesmo tempo, foram aprimorando aspectos sentimentais e perdendo a vergonha dos colegas.
“O bom aprendizado é aquele que foca no potencial que o estudante pode desenvolver com a ajuda de outros”, defende.
Mariana trabalha com turmas de adolescentes entre 14 e 17 anos, com aproximadamente 25 estudantes, no Instituto Futebol de Rua. Ali, ela desenvolve atividades de comunicação oral e escrita, baseadas em diferentes práticas de diálogo, leitura e produção de texto, que permitem o contato com gêneros textuais e outros aspectos discursivos, sem, necessariamente “dar aula” sobre o assunto. Ao se posicionarem como leitores, escritores e protagonistas da palavra, sempre compartilhando sentimentos e impressões, alunos têm a oportunidade de se alfabetizar no sentido restrito e amplo da palavra, compreendendo os propósitos sociais que caracterizam essas práticas: conhecimento, apreciação, recomendação, diversão, crítica, etc.
“Pode haver desvantagens em trabalhar com essa proposta quando não se compreende as exigências de cada faixa etária ou a necessidade de cada estudante”, alerta.
Para evitar que as dificuldades dos alunos passem despercebidas, Mariana sugere “sondagens diagnósticas” com a turma. Se ela percebe, por exemplo, que há problemas de escrita a partir dos ditados, um novo cronograma de reforço é desenhado. E para que os estudantes não se sintam expostos, segundo ela, é preciso que haja empatia. Em geral, são as dinâmicas de comunicação em duplas, grupos ou com toda a sala que impulsionam essa relação de respeito. “Na minha experiência busco fazer com que a turma perceba que possui talentos e não reforçar aquilo que estudante não sabe. É a partir das aptidões que trabalhamos as necessidades.”
Afastada das vertentes tradicionais, Mariana acredita em uma educação transformadora que se inicia pela dinâmica de ensino. Aquilo que parece detalhe vira estrutural, como o fato de organizar cadeiras em roda e não em fileiras, e sentar-se na mesma altura dos estudantes. “Também aproveito para dar explicações orais e não anotá-las prontas, pois isso me permite entender como cada aluno organiza o conteúdo e suas ideias.” Quando os módulos terminam, a turma é convidada a escrever um texto dissertativo argumentativo, opinando sobre as aulas, elencando o que deu certo e sugerindo novas abordagens que estejam ligadas a suas experiências cotidianas.
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Leitura e escrita
Com o apoio da escola, crianças e jovens podem aprender diversos conteúdos vinculados à tarefa de leitura:
Quando os alunos estão imersos em práticas sociais leitoras, podem aprender não só comportamentos leitores, mas, também, conteúdos relacionados aos comportamentos escritores, como:
(Fonte: Coleção: Classes Multisseriadas em Escolas do Campo)