Círio de Nazaré: a fé das crianças paraenses na “mãezinha do céu”

Os pequenos devotos e suas famílias relatam como vivenciam uma das maiores manifestações religiosas do mundo

Élida Cristo Publicado em 28.10.2021
Uma menina de costas e camiseta branca reza diante de um altar montado em casa com a imagem de Nossa Senhora
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Resumo

Crianças de Belém do Pará e suas famílias relatam como é viver o Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações religiosas e culturais do mundo, e comentam sua relação de proximidade com Nossa Senhora.

Ao chegar na casa da Lavínia, 7, faltando pouco mais de uma semana para o Círio de Nazaré, em Belém do Pará, encontramos uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré feita de feltro, vinda do colégio onde estuda, depois de visitar a casa de outros estudantes para as novenas. É a chamada peregrinação de Nossa Senhora. 

Os pais da menina, Tábita e Bruno Magalhães, conduzem a oração: leituras com reflexões sobre Maria, a mãe de Jesus, e sobre a família. “Ainda bem pequena, Lavínia aprendeu a rezar o terço e sempre amou Nossa Senhora”, conta a mãe. “Então, viver esse contexto de espiritualidade mariana [em referência à Maria] sempre esteve presente na nossa rotina”, relembra Tábita.

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Foto: Élida Cristo

Lavínia ao lado do altar montado na sua casa para receber a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, vinda da sua escola.

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Foto: Kleyton Silva

Lavínia e seus pais, Bruno e Tábita, durante a novena em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré, momento em que fazem orações, leituras e partilhas de vida.

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Arquivo pessoal

No dia do Círio 2021, Lavínia e seus pais caminharam o percurso da procissão do Círio a pedido dela.

Embora aconteça sempre no segundo domingo de outubro, o Círio é “uma manifestação religiosa que envolve a cidade de Belém o ano todo, com diversas atividades preparativas para a festa e eventos relacionados, além de inspirar expressões artísticas como o Auto do Círio e os brinquedos feitos de miriti, comenta o teólogo e doutor em Sociologia e Antropologia, José Maria Ramos.

Do ponto de vista das relações humanas, “desperta sentimentos de comunidade, fraternidade e acolhida de parentes, amigos e desconhecidos, pois no imaginário do Círio todos são irmãos, filhos de Nossa Senhora de Nazaré. Essa religiosidade ajuda ainda a forjar a identidade cultural paraense, pois acontece em quase todos os municípios do Estado do Pará”, completa o pesquisador.

Círio de Nazaré – uma festa religiosa e cultural

Realizado há 229 anos em Belém do Pará, o Círio de Nazaré é uma festa religiosa de tradição católica. Ao ultrapassar os limites da religiosidade, se tornou uma grande festa cultural, inclusive registrada como patrimônio cultural da humanidade pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

O Círio acontece em diversos estados, em datas diferentes, mas o maior é o que ocorre na capital Belém: trata-se de uma grande procissão que reúne num único dia mais de 2 milhões de pessoas. É considerado o maior evento religioso do país e um dos maiores do mundo. 

Em 2020 e 2021, em virtude da pandemia, as procissões oficiais foram canceladas, mas a população, de forma espontânea, foi para as ruas para a caminhada do trajeto do Círio, pagar suas promessas e prestar homenagens.

Uma relação que começa no ventre

A filiação que os paraenses sentem por Nossa Senhora de Nazaré pode surgir quase que naturalmente, por uma tradição católica, mas muitas vezes tem origem ou se intensifica em momentos de dificuldades: doença, desemprego, um sonho quase impossível de se realizar…

Para muitas crianças, a relação com Nossa Senhora de Nazaré começa desde o ventre, quando as mães fazem promessas em momentos difíceis da gravidez, e segue sendo cultivada durante a infância. Daí surgem meninas com o nome Maria de Nazaré e crianças que se vestem de anjo para acompanhar as procissões, por exemplo.

“Quando soubemos que eu estava grávida de Lavínia, numa data bem próxima ao Círio, a entregamos aos cuidados da Mãe de Nazaré”, conta Tábita, que tinha acabado de viver uma perda recente e já havia passado por outras perdas gestacionais.

Ao chegar à Basílica de Nazaré, nosso ponto de encontro, já movimentada por devotos do Círio, neste outubro, o pequeno Théo, 3, vibrou ao retornar à igreja onde foi batizado: “É a casa da mãezinha do céu!”, disse ele, no colo da mãe Ariane Sarmento, que também teve uma gravidez de risco. “Eu pedia à Nossa Senhora que eu não queria perder o meu filho. Depois de muito tempo tomando medicação para segurar, eu consegui ter uma gravidez tranquila”, relembra. 

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Foto: Kleyton Silva

Théo fala sobre a Basílica de Nazaré: “É a casa da mãezinha do céu”.

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Foto: Kleyton Silva

Théo e sua mãe, Ariane Sarmento.

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Foto: Kleyton Silva

Théo na frente da Basílica de Nazaré, nas vésperas do Círio, em 2021.

Mas as angústias não pararam após o nascimento do bebê. Ainda recém-nascido, Théo teve complicações de saúde e, após uma perda de peso brusca, precisou ser hospitalizado. Foi então que uma conhecida a aconselhou: “Te apega à Nossa Senhora de Nazaré”. E foi o que Ariane fez. “A família toda ficou em oração, as avós dele fizeram promessas. Até que ele saiu do hospital”, comenta. Hoje Théo é um menino saudável.

A Basílica Santuário é a casa da imagem original de Nossa Senhora de Nazaré, que, segundo a tradição católica, foi encontrada em 1700, nas margens de um igarapé. É para este local onde começou a devoção que a procissão do Círio se dirige todo segundo domingo de outubro.

Tradições de família

A vivência religiosa e as demais manifestações culturais presentes no Círio começam desde a infância, incentivadas pelos pais e avós. Para o pesquisador José Maria Ramos, “o forte sentido na vida da comunidade é o que explica a transmissão dessa religiosidade através das gerações”. Segundo ele, no caso das crianças, não se trata de uma simples imitação dos adultos, embora o meio familiar e social sejam fatores importantes. “A vivência da fé envolve estruturas afetivas, espirituais e psicológicas que vão além da transmissão familiar, trata-se de uma experiência individual, única e intransmissível com Deus por intermédio da Virgem de Nazaré, acessível às crianças”, explica.

De geração em geração, a religiosidade chegou até Pedro Victor, 9, filho da Milene e do Anderson Brito, e irmão do João, 15. No dia do Círio, a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré da Romaria das Crianças, uma das maiores procissões do Círio, estava na entrada da casa da família, numa mesa decorada para recebê-la. 

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Arquivo pessoal

Pedro segura a imagem peregrina da Romaria das Crianças

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Arquivo pessoal

Pedro, como Guarda Mirim, no interior da Basílica Santuário de Nazaré.

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Arquivo pessoal

Pedro caracterizado de São José diante da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré, após Romaria das Crianças.

Embora a relação fervorosa de Pedro com Nossa Senhora venha de família, Anderson conta que o filho desenvolveu de forma espontânea um afeto único por ela. “Todos nós somos católicos, tanto a família por parte de pai como por parte de mãe. Então, esse amor por Nossa Senhora acabou nascendo junto com nossos filhos. Pedro participou de sua primeira procissão com um ano de vida, vestido de anjo. Sua devoção por Nossa Senhora aflorou muito mais e se destaca no meio das crianças – ele quer estar junto, quer servir, quer ajudar o próximo. Isso o levou a estar como Guarda Mirim de Nossa Senhora de Nazaré, desde 2020”, comenta o pai, que também é da Guarda e coordenador da Romaria das Crianças, uma das 12 realizadas no mês de outubro em Belém.

A Guarda de Nossa Senhora de Nazaré é um grupo de homens que trabalha de forma voluntária durante o ano inteiro, tanto na Basílica de Nazaré como em comunidades da paróquia em procissões, missas e demais eventos religiosos e sociais. Também acompanha a imagem Peregrina de Nossa Senhora de Nazaré em suas visitas pelo Brasil. Já a Guarda Mirim é formada por crianças e adolescentes que auxiliam nas celebrações da igreja, acompanham algumas visitas da imagem peregrina e participam de atividades de evangelização.

Para a sua família, assim como para muitas de Belém, o hábito de se reunir no Círio para o almoço é uma das principais tradições, para além da religiosidade. “Depois da procissão, peregrinamos no almoço da minha família e na do meu esposo”, explica Tábita. Para Lavínia, a tradição também iniciou bem cedo. Filha de pais e avós católicos, seu primeiro contato com o Círio foi aos quatro meses de idade, acompanhando ainda só da arquibancada. “Já na segunda vez, seguimos a Trasladação, no sábado, com ela no carrinho, bem à frente da procissão; no domingo, vimos a passagem da procissão dentro de um prédio que fica no trajeto. Desde então, ela segue vivenciando isso sempre”, comenta a mãe Tábita.

Théo, que ainda não viu de perto a procissão, também vivencia o Círio a partir desta tradição familiar. O seu primeiro Círio foi em casa, uma semana após sair do hospital. “Foi um marco, porque foi a primeira vez que ele saiu de casa sem ser para ir ao hospital, mas para viver o almoço do Círio e a novena”, comenta Ariane.

Nos anos seguintes, mesmo acompanhando o Círio pelas telas, por conta do receio da pandemia, a experiência de Théo não foi menos intensa. “Ele tenta cantar as músicas que sabe e, ao ver a imagem de Nossa Senhora na televisão, sua reação é falar: ‘Olha a Nossa Senhora!’”, conta Ariane. “As pessoas dão terço para ele de presente e ele também ganhou uma imagem pequena de Nossa Senhora, que fica em seu quarto”, comenta a mãe.

Na família de Pedro, esse momento também costuma ser marcado pela celebração com todos reunidos. “Na Trasladação, a família assiste à missa juntos e depois vê a passagem da imagem. No domingo, depois da procissão, a gente se reúne para celebrar essa união, a fé. É um momento de agradecer”, comenta Anderson.

Para Pedro, ter uma imagem peregrina em casa é a oportunidade de ter alguém especial por perto para conversar. “É muito emocionante, porque quando eu me sinto mal, eu me sento na frente dela e fico pedindo para passar essa pandemia, para logo, logo a gente voltar a ter procissão. Peço saúde para minha família, para mim, pros meus amigos, pra todo mundo”, relata.

Intimidade de mãe e filhos

Apresentada às crianças paraenses como a “mãe do céu”, desde a infância meninas e meninos constroem uma relação de intimidade com a figura de Maria. No Pará, muitos se referem à ela como Naza, Nazinha, Nazica, mãe, mãezinha.

Como as crianças veem Nossa Senhora:

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