Carta de um filho adulto ao seu pai ausente

"Neste Dia dos Pais, quero reencontrar alguém de quem eu me perdi talvez há muito mais tempo do que imagino"

Alexandre Coimbra Amaral Publicado em 07.08.2018
Pai ausente: foto em preto e branco de de duas pessoas que estão de mãos dadas. A foto só mostra parte dos braços e das mãos.
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Resumo

Neste Dia dos Pais, o psicólogo Alexandre Coimbra Amaral nos lembra que todo pai é também filho, e escreve sobre a realidade muitas famílias brasileiras. "Entender melhor de onde eu vim, para poder desenhar com linhas mais precisas o caminho para onde vou".

Há muito tempo esta carta me pedia para ser escrita. Eu fingia que não precisava, eu mentia para mim mesmo, dizendo que tinha superado a nossa história. Até piada eu fazia disso, sabe?, naquela intenção de fazer tudo ficar mais leve. Era tudo mentira. O que o meu coração sente, há anos, esta carta vai tentar te contar. Não sei se vou conseguir, porque afinal, são anos com o coração trancado para poder acordar, sobreviver, estudar, trabalhar, dormir e ajudar a minha mãe a levar a vida. E você, que também deve saber do que é ter coração travado, pode tentar me entender nesta dificuldade também. Já parei tantas vezes para chorar, então eu peço que você não me abandone pela segunda vez, deixando esta carta num canto qualquer

Eu vou tentar fazer uma mistura de sinceridade com saudade, de desejo com nostalgia do que a gente não viveu, de promessa de futuro com frustração pelo passado não vivido. Este sou eu, este somos nós. É chegada a hora de encararmos o que conseguimos fazer da nossa história, para então podermos fazer o amanhã nascer. Sem esta carta, tenho a impressão de que não haverá amanhã. E eu não sei quanto a você, mas eu preciso assumir que estou muito necessitado de algum amanhã em que você possa existir.

Quando você deixou a minha mãe, eu me lembro de você saindo pela porta, com a mala na mão. Mala. Alma. As mesmas quatro letras. A mala partiu a alma de minha mãe, e uma parte da esperança em nós, homens, foi embora com você, embora ela seja incansável na busca de se superar também nisto.

Eu reverencio demais o amor dela por mim, porque nele mora a tarefa impossível de reparar as feridas e a falta que você deixou na minha história.

Incansável, esta mulher fez dos seus dias uma profissão de amor a um filho que ela teve que criar sozinha. Mas sobre você, ela não conseguiu entender tudo ainda, Pai, mesmo depois de tanto tempo.

Ela não precisa de você para existir, ela é uma pessoa inteira e aos pedaços, como todas e todos nós. Enquanto ela ia recuperando de suas cicatrizes de mulher, eu acompanhava tudo de perto: ela fingindo para mim que não chorava, dizendo que estava resfriada. Ela te maldizendo no telefone para alguma amiga, enquanto eu tentava me concentrar nos meus deveres de casa da escola. Claro que eu me desconcentrava; não era somente um pedaço das promessas de futuro dela que tinha sumido. Era uma parte da minha identidade, era um pedaço de mim, que eu não sabia se colocava um adjetivo ruim para agradá-la ou se reconhecia que, sim, eu gostava de ser parecido com você. Eu escutava, em silêncio, cada conversa dela, à procura de um sentido maior para o seu desaparecimento.

Eu pensei, tantas vezes, que eu não valia a pena. Eu me vi como um fardo, a sobrecarregar os ombros exaustos de minha mãe.

Eu via os olhos dela perdendo o brilho, as olheiras escurecendo em par com sua esperança. Ela me culpava por coisas que eu não tinha como responder. Exigia de mim mais do que eu tinha para dar. E, no momento seguinte, chorava, me abraçava e me pedia perdão, dizia da vida dura e que me amava. No outro dia me alertava para não ser como você, na outra semana me trazia para sua cama e se desculpava. Eu demorei para entender que eu, tantas vezes, era você, Pai. Ela via você em mim. Ela via a dor do seu coração no meu corpo crescente. Ela via em mim todos os homens machistas, abandonadores e violentadores da alma feminina. Hoje eu entendo, mas durante aqueles anos todos foi muito difícil ver com alguma clareza.

Eu só podia acreditar que o problema era eu. Eu deveria ser muito ruim, mesmo. Fiz um pai desistir de mim, e fazia uma mãe enlouquecer diariamente.

Você apareceu muitas vezes, é verdade. Porque na maioria dos dias combinados eu ficava te esperando na janela, certificando-me de que você mais uma vez me deixaria no vácuo da saudade e da confiança em uma pessoa que poderia ser mais que uma idealização. Mas quando você dava o ar da sua graça, era daquele seu jeito, me chamando de filhão, me levando para os lugares e me misturando a qualquer bocado de gente que não me importava, fingindo uma intimidade que nunca conseguimos ter.

A sua mãe fez tantas vezes aquela cara envergonhada, entre o desejo que você fosse diferente e a necessidade de me amar para não deixar o buraco do meu coração ainda maior. Eu queria você, e você não aparecia, mesmo indo me buscar. Eu não conseguia sentir a sua presença, mesmo abraçando a sua pele fugidia. Eu não tinha você, e nunca soube dizer o que era pior, se a sua ausência em corpo ausente ou em corpo presente.

Eu cresci assim, Pai. Olhando para um espelho quebrado de mim, em que faltava um pedaço de você para ficar menos imperfeito.

Olhando cabisbaixo para minha mãe, temendo a próxima fala que me cobrava ser o seu avesso. Eu sou hoje um homem que demora para se ver feito, porque não me sinto tão pronto para a vida. Eu não sei se é do seu abraço que eu preciso, pode ser até que depois dele eu continue vagando ermo neste deserto de mim. Eu escolhi jogar água na minha aridez, porque estou cansado de ser uma máscara. Eu estou aqui, trazendo a minha verdade para ser lida por seus olhos que também devem ter se cansado de buscar alguma felicidade. Eu não preciso da sua perfeição, não acredito mais em nenhum herói. Eu só preciso conversar com o homem, com a sua história, escutar a versão dos seus fatos. Entender melhor de onde eu vim, para poder desenhar com linhas mais precisas o caminho para onde vou.

Neste Dia dos Pais, eu quero reencontrar alguém de quem eu me perdi talvez há muito mais tempo do que imagino.

Eu quero convidar você para voltar para si mesmo, para então poder escolher voltar para mim como seu filho. Eu não posso prometer leveza somente, porque as lágrimas e a vontade de gritar já me visitaram enquanto eu escrevia os parágrafos anteriores. Mas eu estou também cansado de guerra. Eu ando à procura de escolher minhas batalhas, e por isso quero acreditar que vale a pena lutar pelo seu amor.

Eu posso garantir que o abraço vai acontecer, para que nós dois possamos sentir na pele todas as emoções que tivemos que represar para seguir adiante. Venha abrir as comportas da minha alma que é sua também, Pai. Há um rio que precisa fluir, há uma vida que não consegue mais se blindar, há sorrisos escondidos que merecem brotar como filhos das lágrimas evidentes.

Eu espero por você.
Eu espero por mim.
Eu espero por nós.

Feliz Dia do Filho, Pai.

*Este é um texto fictício, que retrata e acolhe a realidade de muitas famílias brasileiras que vivenciam o abandono paterno.

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