“Um dia, um colega reclamou do professor fazer a audiodescrição de um filme pra mim. Fiquei muito chateada”, conta Isabela Almeida, 13, que tem deficiência visual. “Acho que a gente deveria ensinar as pessoas a se colocarem no lugar do outro e tentar imaginar como isso o deixa triste.” Para Verônica Almeida, a filha não foi apenas vítima de capacitismo na escola; ela sofreu violência psicológica.
Depois de observar algumas mudanças de comportamento no filho, como esconder mochila e uniforme, não querer tomar banho e apresentar resistência de ir para a escola, uma mãe passou a investigar por conta própria o que estava acontecendo. Na última semana, uma professora desta escola, no Distrito Federal, foi denunciada por cometer maus-tratos em uma classe especial de alunos autistas.
As histórias revelam como a escola pode ser um ambiente onde se cometem violências, embora apenas 11% dos casos aconteçam em berçários, creches ou instituições de ensino em geral, segundo levantamento do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. A maior parte dos atos de violência, quase 76%, acontece dentro da casa da vítima.
Diante de uma denúncia de violação, a orientação é não “silenciar ou duvidar das crianças e supervalorizar o que os cuidadores estão falando, mas efetivar a proteção e a saúde dessas crianças”, diz Matheus Firmino, integrante do Comitê de Enfrentamento da Violência e de Defesa dos Direitos Sexuais de Crianças e Adolescentes (COMCEX/MS). Segundo ele, “o primeiro passo é analisar as condições de vida e convivência familiar, garantido que a criança não ficará vulnerável na presença do violador”.
Crianças ou adolescentes com deficiência vítimas de violências têm direito a uma escuta especializada de acordo com suas necessidades. “Como uma criança surda vai denunciar uma violência se os serviços de acolhimento não dispuserem de intérpretes? No caso de crianças com alguma deficiência que as impeça de se comunicar com uma língua gráfica ou verbal, deve ser garantido atendimento multiprofissional”, afirma Firmino. Mas “toda criança é capaz de falar sobre seu corpo e de denunciar abusadores”, diz, “o que nos compete é ouvir, acolher e proteger”.
Contudo, “se a criança ou adolescente com deficiência vive em um domicílio repleto de barreiras e sem acesso pleno aos seus direitos fundamentais, é ainda mais complicado que consiga compreender ou denunciar o contexto em que está inserido”, comenta Anna Beatriz Valentim, assistente social e mestranda em serviço social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Como denunciar violências contra crianças e adolescentes com deficiência?
O Disque 100 recebe denúncias de violações de direitos humanos. O serviço funciona diariamente, 24 horas por dia e as ligações são gratuitas. “Profissionais dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e os Conselhos Tutelares, por exemplo, são essenciais na vigilância contra a violência”, diz Valentim.
Qual é o papel das escolas no combate à violência e proteção desse grupo?
O combate à violência “é um trabalho integrado que envolve a escola, o sistema de garantia de direitos e os espaços de participação de crianças e adolescentes”, comenta Soraia Melo, coordenadora da Rede Não Bata, Eduque. Além de sensibilidade para perceber o comportamento de crianças e adolescentes e oferecer segurança e acolhimento, as escolas podem apoiar eventuais denúncias, diz o estudo “O papel da escola no combate à violência doméstica sob a ótica do Serviço de Proteção Social às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência”. Também é um trabalho complementar e preventivo falar de educação sexual, para que “crianças e adolescentes aprendam a identificar abusos e consigam compreender os limites de seus corpos”, traz o documento.
Segundo Thais Becker, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa das Políticas Públicas para Inclusão Social da Universidade de São Paulo (USP), a escola deve ser “um instrumento de garantia de dignidade humana, de promoção da cidadania, capaz de acolher, em um espaço seguro e respeitoso, todas as pessoas”, mas os desafios ainda são frequentes na garantia do acesso à educação para pessoas com deficiência (PcD). Entre eles, a pesquisadora detalha que “faltam recursos para a educação, valorização dos professores, uma atuação efetiva de fiscalização das negativas de matrícula das crianças e adolescentes com deficiência na escola, além do próprio enfrentamento ao capacitismo aliado à garantia de outras condições de permanência”.
Outros tipos de violência e seus impactos entre crianças e adolescentes com deficiência
Em janeiro foi revogado o “decreto da exclusão” (10.502/2020), que incentivava a segregação de pessoas com deficiência em escolas e classes especiais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas 25,6% (uma em quatro pessoas) com deficiência com mais de 25 anos concluiu a educação básica contra 57,3% entre pessoas sem deficiência. A taxa de analfabetismo é também maior entre esta população: 19,5% contra 4,1% de pessoas sem deficiência.
Crianças com deficiência são sujeitos de direito
Apesar de conquistas viabilizadas por meio de políticas públicas e de movimentos sociais em nosso país, “os direitos de PcDs ainda não se efetivam totalmente na prática muito em função do capacitismo estrutural”, comenta Valentim. Para ela, o preconceito direcionado à pessoa com deficiência reforça o estereótipo “de que ‘parece’ que pessoas com deficiência não são alvo de violações”, o que acaba resultando em subnotificações de casos.
Além disso, Valentim comenta os “lugares infantilizados” reservados a pessoas com deficiência. “Infelizmente, ainda é como se esse grupo não se tornasse adulto e sempre ‘precisasse’ de outra pessoa para indicar suas necessidades e vontades. Quando crianças, não se dá a devida autonomia conforme suas limitações. Não é porque possui algum tipo de deficiência que não pode viver em sociedade”, diz.
Para a mãe de Isabela, é importante que pessoas com deficiência “vivam de forma independente e possam exercer seus direitos de cidadania e de participação social”. Melo complementa: “não é apenas sobre incluir, é sobre garantir a possibilidade de que sintam-se pertencentes e que o direito de participação seja garantido”.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), crianças na primeira infância devem ter prioridade de atendimento em suspeita ou confirmação de violência de qualquer natureza. Também deve existir notificação compulsória em casos de suspeita ou confirmação da violência praticada contra pessoas com deficiência, diz o Estatuto da Pessoa com Deficiência ao assegurar atenção integral em atendimentos de saúde. Em 2001, a Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIF) foi aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), reforçando a ideia de integralidade no atendimento médico, uma vez que compreende a PcD também em relação à sua participação na sociedade e atividades do cotidiano.
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No primeiro semestre de 2023, o Brasil registrou 4.427 denúncias de violações de direitos humanos contra crianças de 0 a 12 anos com alguma deficiência, que englobam violências físicas, sexuais e psicológicas. Se considerada a faixa etária de 0 a 17 anos, o número chega a 5.899 denúncias e 12.649 violações. Mundialmente, estima-se que uma a cada três crianças com deficiência já tenha sofrido algum tipo de violência ao longo da vida.
Fontes: Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos e The Lancet Child & Adolescent Health, de março de 2022