Bia Ferreira fala sobre sonhos, infância e Lei de Cotas

Artista fala sobre a importância da Lei de Cotas em sua vida e pede “calma” para a Bia criança: “as coisas vão melhorar”

Eduarda Ramos Publicado em 27.09.2022
A cantora Bia Ferreira está cantando e tocando violão. Bia é uma mulher negra, com dreads pretos, que usa roupas e óculos vermelhos.
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Resumo

Bia Ferreira comenta a importância da Lei de Cotas em sua vida e como a política representa uma possibilidade real para outras crianças sonharem futuros.

Aprovada em 29 de agosto de 2012, a Lei de Cotas (12.711) mudou o acesso de juventudes negras e indígenas ao ensino superior no Brasil: universidades e institutos federais passaram a operar com reservas de 50% das vagas para alunos oriundos de escolas públicas – entre eles, estudantes negros (pretos e pardos), indígenas e com deficiência. Em 2011, pretos e pardos correspondiam a 35% das matrículas no ensino superior; já em 2020, o número chegou a 46%. Diante dos debates sobre a política de cotas em 2012 e sendo uma jovem negra de então 19 anos, Bia Ferreira começava a rascunhar versos da canção “Cota não é esmola”.

“E nem venha me dizer que isso é vitimismo hein
Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo
Existe muita coisa que não te disseram na escola
Eu disse, cota não é esmola”

Antes da canção nascer, Bia escolheu cursar Direito “numa tentativa falha de se sentir aceita”, como diz. A partir daí, encarar a arte passou a ser não apenas um hobby ou mera profissão, mas um chamado – era cantando que ela poderia ser vista e que seus aprendizados como uma pessoa dissidente chegariam no mundo. Hoje, “Cota não é esmola” está presente nas leituras obrigatórias do vestibular da Universidade de Brasília (UnB) e em livros didáticos do sistema Sesi-SP. 

O Lunetas conversou com Bia Ferreira sobre sua infância e o impacto da canção “Cota não é esmola” em sua vida e potencialmente na vida de outras crianças e jovens que puderam sonhar com a educação superior formal. Ao trilhar seu caminho com afeto, ela busca  tranquilizar a pequena Bia do passado dizendo que, apesar das dificuldades, é preciso ter calma porque as coisas vão melhorar.

Na imagem, Bia Ferreira: Bia é uma mulher negra, com dreads loiros e camisa preta. Ela sorri e usa óculos de armação caramelo.Confira a entrevista com Bia Ferreira:

Lunetas – Escrita em 2011, quando “Cota não é esmola” foi lançada ainda não existia a Lei de Cotas. Como você vê a polêmica gerada pela recepção da música e o que mudou desde então?
Bia Ferreira – Quando começaram esses debates a respeito da inserção de cotas, passei a ter mais contato com movimentos sociais, estudantis. Comecei também a entender meu corpo enquanto corpo de uma mulher negra nessa sociedade, quais eram as minhas necessidades… 

Embora tenham pessoas do contra – porque sempre vai existir essa galera desinformada que acha que cota é esmola, que a gente não tem direito de frequentar a universidade e ter acesso à educação de qualidade -, eu não me apego a elas. Acho que a mudança que vem acontecendo é ver mais pessoas parecidas comigo ocupando os mais diferentes espaços. Entender que estamos vivendo um momento de regressão quanto às políticas afirmativas para pessoas pretas, quilombolas, indígenas, e que a Lei de Cotas corre risco de deixar de existir não eram coisas que eu imaginava quando ela foi aprovada. Muitas pessoas tiveram acesso à informação e puderam mudar suas vidas por meio da educação. Essas pessoas têm a ‘obrigação’ de lutar pela manutenção dessa política de reparação, e estão lutando.

“A luz no fim do túnel é ver crianças cantando essa canção e estudando essa música na escola; a luz no fim do túnel é ser leitura obrigatória no vestibular da UnB e ter universidades usando a música como base teórica para estudo”

Essa é a luz no fim do túnel: saber que a mensagem está chegando para o maior número de pessoas possíveis. Essa é minha música mais ouvida e eu tenho muito orgulho disso. Quando eu a fiz, queria que chegasse pra pessoas que se parecem comigo, e ver isso acontecendo hoje é a realização de um sonho, um objetivo alcançado, fico muito feliz.

De que maneiras a Bia que cantava na igreja evangélica se relacionou com a Bia que lançou “Cota não é esmola”? Como você descreveria o impacto da igreja na sua vida?
BF – Cantar era uma das coisas que eu mais gostava de fazer na vida, e o único lugar que eu tinha pra cantar era a igreja. Eu me agarrava a essa possibilidade de cantar, tocar e ter um lugar para me apresentar e ia. A Bia que escreveu “Cota não é esmola” é uma menina saindo do trauma causado pela igreja, saindo dessa ideia de culpa, de pecado, é uma Bia que quebra com essa lógica e dogmas opressores do cristianismo e entende que só a informação liberta. A Bia que escreveu “Cota não é esmola” teve acesso a várias informações que a Bia que cantava na igreja não tinha, e eu fiquei muito ansiosa pra contar pras pessoas aquilo que eu estava aprendendo. Foi assim que surgiu a música.

“Se eu pudesse mandar um recado pra Bia criança, o recado seria ‘menina, as coisas vão melhorar, calma!’”

Como foi sua infância? Como era a Bia criança – do que ela gostava, com o que sonhava, como enxergava o mundo?
Bia Ferreira – A minha infância foi muito gostosa de ser vivida, eu não tinha muito acesso a computador, televisão, morava na periferia da zona rural de Minas Gerais e a gente brincava de carrinho de rolimã, jogava bola na rua, queimada, ia pescar com meus pais… A Bia criança enxergava o mundo como um lugar divertido. Eu fazia pipa, jogava pião, bolinha de gude, lia bastante, sempre incentivaram eu e meus irmãos a ler em casa, a inventar histórias e a consumir cultura. Eu estudo música desde muito criancinha. Eu sonhava em ser médica e viajar pelo mundo fazendo missões para ajudar pessoas, sonhos de criança que cresceu na igreja. A oportunidade de ter acesso à educação musical mudou minha forma de enxergar o mundo.

A Bia criança ficaria feliz com a Bia de agora? Que recado você deixaria para as crianças de hoje?
BF – Eu acho que a Bia criança ia achar uma loucura – ela iria falar “não, não é possível, é sério?”, mas também estaria muito orgulhosa. Eu me orgulho de mim hoje! Pela forma que escolhi construir minha carreira com arte, de atender esse chamado de fazer arte por amor, mas também pela necessidade de levar informação para as pessoas. 

“Ame, e que ninguém se meta no meio, o belo definiu o feio para se beneficiar. Ame, e que ninguém se meta no meio, porque amar não é feio, o feio é não amar” – trecho da música “Levante a bandeira do amor”, Bia Ferreira.

Como você enxerga a importância da Lei das Cotas em sua vida e como você a relaciona com as múltiplas infâncias do Brasil?
BF – A Lei de Cotas na minha vida é extremamente importante, ela é um divisor de águas na forma como eu me construí no mundo. Os acessos que eu tive na universidade, os estudos, as possibilidades de viajar para congressos, de conhecer mais pessoas… Acho que a Lei de Cotas veio para possibilitar e facilitar o acesso às informações que eu precisava para sobreviver nesse mundo em que um jovem preto a cada 23 minutos é assassinado. 

Que as pessoas que entram nas universidades por meio de cotas possam enxergar um futuro próspero. Prosperidade é ter acesso à informação, ter senso crítico para pensar. Nesse sentido, eu vi a transformação da minha vida, dos meus amigos, dos meus primos, da galera que vivia perto de mim, possibilitando outras oportunidades de sonho. Às vezes a gente sonha muito pequeno porque não tem acesso a um sonho maior. Quando vemos essa possibilidade de alcançar outros espaços e cria-se um imaginário de acesso, é quando ampliam-se também os sonhos e se permite que mais pessoas possam sonhar. Esse foi um dos motivos pra eu começar a sonhar, então eu torço pra que mais pessoas experimentem a satisfação de poder imaginar suas novas possibilidades de vida e realizá-las.

“O acesso à universidade me deu a possibilidade de imaginar um futuro diferente, e é isso que eu espero que se mantenha. Só existe aquilo que a gente sonha, não dá pra materializar o que a gente não sonha. Aquilo que nunca foi imaginado não acontece”

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