PNLD: educação pública terá livros sem pluralidade, dizem autores

De acordo com escritores, ilustradores e pequenas editoras, editais do PNDL para obras literárias destinadas à educação limita criatividade e exclui pluralidade

Camilla Hoshino Publicado em 24.05.2018

Resumo

Dois editais do PNDL, que definem a compra de livros para escolas públicas, têm causado polêmicas entre autores, ilustradores e editoras independentes. Segundo eles, editais são um retrocesso para a diversidade literária. Entenda.

“É como se o governo trocasse uma floresta nativa por uma floresta de eucaliptos, em que a biodiversidade é sufocada pela monocultura.” Esta foi a imagem encontrada pela Liga Brasileira de Editoras (LIBRE), rede composta por mais de 100 editoras independentes, para descrever os dois editais do governo para a compra de livros de literatura infantil destinados a escolas, no âmbito do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNDL).

A entidade publicou no início do mês de maio uma carta aberta ao presidente do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, Antônio Idilvan de Lima Alencar. No documento, os editais são caracterizados como um retrocesso para a leitura e o letramento no país, reforçando um cenário já existente de escassez de ações governamentais nesta área.

Desfavorecem e dificultam a participação de editoras independentes, reduzindo a oferta de diversidade para os alunos da rede pública”, afirma o texto

O edital do PNLD 2018 literário prevê a avaliação e a distribuição de obras literárias para estudantes da educação infantil, dos primeiros anos do ensino fundamental (1º ao 5º anos) e do ensino médio. Já o PNLD 2020 é o responsável por ofertar obras didáticas e literárias para estudantes e professores dos anos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º).

Manifestações

Desde o anúncio dos editais, no início de abril, autores, ilustradores, editoras independentes e profissionais ligados ao livro têm manifestado indignação. Para a escritora mineira Marilda Castanha – referência no Brasil, quando o assunto é literatura infantil -, o conjunto de proposições do governo é polêmico e engessa os livros de literatura para a infância.

“Provoca uma sensação de retrocesso. Os editais funcionam como um receituário de obras que, se não for discutido, trará livros sem liberdade a longo prazo”, afirma

Em 2017, a pedido do próprio Ministério da Educação, coordenadoras do Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil (que reúne pesquisadoras das faculdades de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio de Janeiro) redigiram um documento para orientar a elaboração de um edital para a compra de livros literários para crianças da educação infantil. Segundo o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB), as sugestões não foram consideradas pela atual gestão do PNDL.

O MIEIB também escreveu uma nota em repúdio ao PNDL 2018 literário, apontando conflitos em relação ao Plano Nacional do Livro e Leitura, em vigor desde 2006 no país. As organizações que compõem o movimento solicitam uma audiência pública para debater o assunto.

“O acesso das crianças brasileiras ao livro, na escola, deve contribuir para ampliar suas experiências éticas, estéticas e políticas, como determinam as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Entretanto, o referido Edital, além de estabelecer conteúdos, cerceia a forma e as práticas de leitura, pois especifica temas por faixa etária, determina tamanhos e formatos dos livros e inclui manuais didáticos de uso das obras na escola”, aponta a nota.

Desvantagem na concorrência

Uma das maiores polêmicas dos editais giram em torno da padronização dos formatos. Na opinião de Daniela Padilha, publisher da Jujuba Editora, as adaptações necessárias para participar dos editais do PNDL desfavorecem pequenas editoras, pois exigem um investimento financeiro para a produção de materiais sem saber se serão aprovados. Além disso, a proibição da divulgação de materiais para os professores (que serão os responsáveis por escolher os livros) será proibida. “Assim, os grandes grupos investem milhões com campanhas de marketing em revistas, internet e até mesmo levando brinde aos professores”, explica.

A editora compara o atual PNDL ao antigo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), suspenso pelo governo  em 2015, que também necessitava de revisões em alguns pontos, mas que incentivava uma disputa mais justa entre editoras. “O que estava em jogo ali era a qualidade literária do livro inscrito”, recorda. Apesar disso, o antigo programa não incorporava a formação de professores, o que ela considera ponto positivo atualmente.

Formatos
Os livros no âmbito do Programa Nacional do Livro Didático (PNDL) devem ter um dos três formatos sugeridos: 205 x 275 mm, 270 x 270 mm ou 135 x 205 mm. A capa deverá ser em papel cartão 250 g e miolo em couchê 80 g. A explicação da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação para isso é curta: é mais barato e uma forma de viabilizar o programa.

“Curiosidade é um vulcão”

A autora Marilda Castanha explica que limitar o formato físico dos livros a um padrão específico pré-estabelecido é limitar a criatividade, pois vai contra a própria lógica dos livros voltados ao público infantil, em que criadores se utilizam da liberdade espacial da publicação para pensar aspectos gráficos e visuais que dialogam com a narrativa literária.

Segundo a autora, o programa em si traz uma contradição ao relacionar o livro literário ao livro didático, como se as duas obras possuíssem a mesma natureza.

Além do formato, o edital propõe fichas de leitura que atribuem aos livros um caráter pedagógico e vinculam temas a determinada faixa-etária, para cumprir tópicos curriculares dentro das grades de ensino.

É muito difícil dizer que cada faixa-etária ensina algo. Não é nessa ordem que se descobre o mundo, pois o cérebro não aprende em camadas, em um movimento linear”

Ela cita o próprio exemplo de seu livro “Ops” (Cosac Naify, 2011), que trata de uma história feita com uma palavra. O livro foi pensado para a criança, mas também foi trabalhado recentemente por professoras no ensino médio.

Afinal, para que serve a literatura?

As regras do edital, de acordo com alguns profissionais da área, restringem o que eles chamam de “bibliodiversidade” e criam um compromisso de transmissão de conteúdos considerados “apropriados para a infância”. Se por um lado os editais garantem a compra anual de livros literários para escolas, por outro, estes livros estão vinculados a uma função didática. “A literatura é holística por natureza e pode ser percebida de diferentes maneiras. Muitos livros não se propõem a ensinar, mas tratam de temas, problemas e relações de forma poética. Então, não se pode quebrar esse imaginário”, defende Marilda Castanha.

O debate da faixa-etária e de eixos temáticos pré-definidos se relaciona à autonomia dos professores dentro de sala de aula.

Ao fornecer “manuais de mediação” ao professor, a escritora mineira acredita que o governo está dizendo que a capacidade de interpretação dos profissionais precisa de “muletas”

“Cada vez mais precisamos oferecer aos mediadores instrumentos de compreensão, mas isso não significa determinar que todos trabalhem com um mesmo padrão, pois as crianças não são iguais umas às outras.”

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