‘Salão azul’: acolhendo crianças com autismo no corte de cabelo

Em São Paulo, profissionais especializados em acolher crianças com transtornos sensoriais reforçam que autismo não precisa ser sinônimo de desconforto social.

Renata Penzani Publicado em 24.11.2017
Salão Azul: foto em preto e branco de um menino que está em um salão, tendo os cabelos cortados.
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Resumo

Uma vez por mês, este salão infantil abre as portas somente para crianças do espectro autista. Conversamo com o paulistano Alexandre Finozzi, criador da ação. Confira!

O paulistano Alexandre Finozzi, de 41 anos, não tem ninguém do espectro autista na família. Não é pai, irmão, primo e nem amigo de alguém com autismo. Não é nem sequer pai, mas mesmo assim entendeu que, quando se diz “crianças”, no plural, é preciso considerar também aquelas limitações específicas. Deste então, ele passou a ser tio – não de sangue, mas de afeto -, o “tio Alê”, como é conhecido.

Alexandre é sociofundador da rede de cabeleireiros infantil Corte Kids, com unidades na Mooca, Tatuapé e São Caetano. Foi a rotina do seu trabalho no salão que demonstrou a necessidade de dar um passo além em seu negócio. Do atendimento comum, passou ao atendimento humanizado e inclusivo, com foco em acolher crianças autistas. Nasceu assim, em março deste ano, o projeto “Domingo Azul”: uma vez por mês, o espaço abre as portas somente para crianças do espectro.

O corte de cabelo para crianças do espectro

“Recebemos clientes com diversos tipos de transtorno e percebemos que a criança autista possui dificuldade em lidar com várias situações corriqueiras no salão, inclusive na hora de cortar o cabelo, então fomos estudando estratégias para atendê-los”, conta.

O que parece uma obviedade – afinal, o atendimento humanizado nada mais é do que atender bem -, pode significar o mundo para as famílias de crianças atípicas. Acostumadas a sofrer com a rejeição social que vem junto com a condição dos filhos.

Ao longo desses 10 anos, o profissional pôde conviver com os diferentes graus de autismo, esclarecer dúvidas neurológicas e adaptar-se a essa realidade. Ajustando o tempo de atendimento, o volume do som ambiente e oferecendo atividades inclusivas enquanto esperam, como livros para ler e desenhar. Além de um manual de atendimento e treinamentos para toda a sua equipe. “Nossos profissionais possuem uma estrutura completa para entreter a criança e envolve-la em uma experiência prazerosa”, garante.

“Percebemos que as mães ficavam aliviadas e felizes por encontrar um lugar que cuidassem bem de seus filhos e, foi assim que surgiu a ideia de dedicar um dia inteiro a eles”, explica.

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Conseguir a confiança dos pequenos requer um trabalho de aproximação afetiva, paciência e afeto

Antes de acolher, é preciso perceber

Para quem tem transtornos sensoriais, o simples ato cotidiano de cortar o cabelo pode se tornar um sofrimento psíquico. Isso porque a forma de fazer linguagem de um indivíduo do espectro – principalmente, as crianças, que estão começando a se desenvolver – é diferente de uma pessoa típica. A forma como sentem o calor, o frio, o toque, a textura, os ruídos e outros estímulos dos sentidos influenciam diretamente na forma como se comportam socialmente. Principalmente porque nem sempre conseguem comunicar o desconforto que sentem. Daí as crises de agressividade, que nada mais são do que um desarranjo emocional.

Antes de conhecer todas essas particularidades do comportamento de uma criança atípica, é preciso identificar que existe um sofrimento real ali. E isso só acontece com muito senso de empatia, exercitando a capacidade de sentir e perceber o mundo como o outro que eu não sou, mas o qual me proponho a entender.

Afinal, o que muda entre picotar as madeixas de uma criança típica e uma com uma condição neurológica específica? Para Alexandre, muda tudo.

A confiança no atendimento humanizado

“O autismo aguça os sentidos e amplia sensações e emoções. Barulho ou o som alto incomoda demais, instrumentos como tesoura ou maquina de cortar cabelo assusta. Sentir-se preso gera tensão, entre outras situações normais de um salão. Percebendo isso, passamos a nos esforçar para criar um laço de confiança”, explica o cabeleileiro.

O caminho de um atendimento humanizado, seja ele onde for, passa por observar todo o ambiente como uma criança com autismo faria. As cores, os ruídos, a fala, os gestos. Tudo isso comunica uma intenção de acolher ou repelir.

“Antes de começar a cortar, adequamos o som ambiente, procuramos manter nossos gestos mais suaves. Dedicamos mais tempo  para o dialogo, permitimos pausas estratégicas durante o corte, além de acompanha-los enquanto interagem em outras partes do salão, respeitando o momento delas até que seja finalizado o serviço. Nos mantemos alegres e positivos a tomo momento para que a criança se aproxime de nós e nos enxergue como verdadeiros amigos”, compartilha.

Empatia requer tempo, cuidado e paciência

Conhecido como “tio Alê”, depois da proximidade que estabeleceu com a clientela pequenina, Alexandre conta que, para ter sucesso na intenção de incluir, é preciso ter cuidado redobrado, afinal, estamos falando de crianças, que são naturalmente irrequietas e agitadas, em contatos com objetos pontiagudos, cortantes e de alta temperatura. Prevendo os riscos, o salão investe treinamento especializado.

“Imagine trabalhar com material cortante e crianças que se movimentam o tempo todo? Sempre existe um risco de machucar. A criança autista também pode ter movimentos inesperados e o profissional especializado em atendimento infantil deve estar atento a isso. Por essa razão, mantemos uma frequência de treinamentos diferenciados e dedicados ao atendimento infantil, criando situações para que eles saibam como agir, além de investir na parte lúdica que cativa o cliente”, ressalta.

O resultado dessa investida, explica o profissional, varia de acordo com a paciência e a persistência dos envolvidos, e requer nunca perder de vista de que o objetivo principal é conseguir o máximo de conforto para a criança. Alexandre reforça que a família é fundamental nesse momento.

“Quanto mais essa bandeira for divulgada mais estabelecimentos vão olhar para eles e entender a necessidade de se preparar”

Corte de cabelo e o respeito com as crianças

“O comportamento no salão a principio é de desconfiança, assim que perceberem que alguém irá mexer em seu cabelo a defesa é de desviar nossa atenção. Eles começam a querer ir para outro local, vão um lado e para o outro tentando fugir da situação. Nesse momento, é muito importante a ajuda dos pais, que calmamente devem conduzir a criança da forma que elas se sentem mais seguras”, explica.

“Uma dica importante aos pais que sentirem dificuldade com a agitação da criança é respeitar o momento dela e não exigir demais. O corte pode ser pausado e continuar momentos depois ou mesmo no outro dia, até que a criança se sinta segura e à vontade no ambiente. Outra dica é trazê-los um pouco antes do horário combinado, para que possam se ambientar e brincar. Com certeza esse cuidado facilitará e deixará a criança mais feliz e confiante”.

Iniciativas como esta reforçam a importância de resgatar a empatia nas relações, e demonstram que os caminhos da inclusão pressupõem uma revolução no próprio de ser e estar no mundo. Observar esses pontos e investir em uma comunicação corporal e verbal afetiva contribui não só para uma relação entre cliente e alguém que oferece um serviço, mas para as relações humanas em geral.

O desejo de Alexandre é que sua iniciativa seja apenas a primeira de um movimento maior pela inclusão verdadeira e efetiva.

“Quanto mais essa bandeira for divulgada mais estabelecimentos vão olhar para eles e entender a necessidade de se preparar. Eu quero que o movimento cresça o máximo que puder em diversos salões, tornando a vida dos pais e das crianças mais tranquila e feliz”, defende.

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