Apadrinhamento: afeto para crianças em situação de acolhimento

O acolhimento institucional é uma medida de proteção, excepcional e provisória, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Camilla Hoshino Publicado em 27.11.2017
Em um jardim, um homem brinca com uma menina fazendo a segurando em seus braços.
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Resumo

Você já ouviu falar em apadrinhamento afetivo? Ele fortalece a convivência familiar de crianças e adolescentes em serviços de acolhimento, que possuem chances remotas de adoção. Saiba mais como o assunto e conheça o caminho para apadrinhar uma criança.

“Hoje é o dia mais feliz da minha vida”. A publicitária Vanessa Tordino se emociona ao relembrar a reação da afilhada Sandy, de 16 anos, no dia em que conquistou a vaga que tanto queria na escola. Se era certo que, após perder um ano, a menina teria uma nova chance de estudar, a verdade é que a felicidade dela tinha outro motivo: era a primeira vez que alguém fazia a simples pergunta “como foi seu dia?”.

“Essa é a essência da vida. Não precisamos de muita coisa, mas de afeto”, diz Vanessa, voluntária no programa Apadrinhamento Afetivo, do Instituto Fazendo História. Há um ano e meio conheceu Sandy e, desde então, as duas têm caminhado juntas, construindo uma relação de confiança. Para a publicitária e mãe do Vittorio, de cinco anos, ter uma referência que ame, aconselhe e apoie em momentos difíceis, pode transformar uma vida.

Pensando na importância dessa convivência familiar e comunitária, o programa do Instituto surge em 2015, com o objetivo de atender crianças e adolescentes, entre sete e 17 anos, em serviços de acolhimento no Brasil. No centro do processo de apadrinhamento, conforme destaca o Instituto, estão a disponibilidade afetiva, o tempo compartilhado e o vínculo duradouro.

“As crianças selecionadas pelo Judiciário para o programa são aquelas com longo período de institucionalização, que possuem chances remotas de voltar para as famílias de origem ou ser adotadas”, explica a chefe da seção de psicologia da Vara Central da Infância e Juventude de São Paulo, Eliana Kawata. Ela tem acompanhado de perto o trabalho de instituições parcerias da Vara, assim como a evolução dos padrinhos e madrinhas, por meio do Plano Individual de Atendimento (PIA), produzido e detalhado pelos serviços de acolhimento.

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Jesus Suppertramp

O programa traz para jovens acolhidos a oportunidade de um suporte afetivo para além daqueles construídos dentro da instituição.

 

O que é o acolhimento institucional?

Acolhimento institucional é uma medida de proteção, excepcional e provisória, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É aplicada em casos de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes, somente quando não há alternativas para permanência no convívio familiar. (FONTE: ECA)

Troca e afeto

Como a idade de acolhimento nas instituições não passa de 18 anos ( No Brasil, a única política pública específica para quem tem entre 18 e 21 anos e morou em um serviço de acolhimento é o auxílio à moradia em Repúblicas Jovens), a ideia do Instituto Fazendo História é que o programa possa estabelecer um laço entre os jovens e voluntários, que se estenda após a transição para a maioridade. “A maioridade é um dos momentos mais difíceis, pois o jovem sai do acolhimento e tem que enfrentar a vida, muitas vezes com uma formação escolar precária e sem ter tido uma base familiar, afirma Eliana Kawata.

A maioridade é um dos momentos mais difíceis, pois o jovem sai do acolhimento e tem que enfrentar a vida

Apesar disso, de acordo com ela, abandonar a visão assistencialista é uma das chaves para o processo de apadrinhamento. “Não é porque o jovem está privado de convivência familiar que estará de braços abertos para receber qualquer pessoa. É preciso também lidar com as frustrações e entender que é uma troca, que ambos irão crescer nessa relação”.

Quem tem padrinho ou madrinha sabe que eles não são apenas quem chega com presentes em datas comemorativas, mas quem acompanha uma trajetória de formação ou que simplesmente estão presentes no dia a dia.

No caso de Vanessa e Sandy, que se encontram no mínimo uma vez por semana, essa convivência acaba sendo muito natural. “Nossa programação em família varia, às vezes, vamos assistir filmes, fazemos passeios ou optamos por ficar em casa, tomando café, comendo bolo ou montando um álbum”, relata a madrinha.

Segundo o Levantamento Nacional das Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento, do Ministério do Desenvolvimento Social (2011), cerca de 2.624 serviços de acolhimento institucional atendiam 36.929 mil crianças e adolescentes em todo o país, naquele momento. Principais motivos de acolhimento: 37,6% negligência na família; 20,1% pais ou responsáveis dependentes químicos; 11,9% abandono e 10,8% violência doméstica.

A publicitária conta que, antes de ser voluntária no Apadrinhamento Afetivo, ela havia dado aulas de inglês em serviços de acolhimento e se abalou, especialmente, com a perda de vínculo com dois jovens que, após completarem 18 anos, deixaram o abrigo. Ao conhecer o Instituto Fazendo História, encontrou uma oportunidade de estabelecer outras formas de conexões.

Antes de chegar até a afilhada, Vanessa passou por um processo longo de formação, entrevista e seleção. “Nos conhecemos numa dinâmica de grupo e, a partir daí, não nos desgrudamos mais. Nos escolhemos”.

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arquivo pessoal

Pingente que retrata o primeiro desenho que Vanessa e Sandy fizeram quando se conheceram no Instituto Fazendo História.

Pré-requisitos para ser padrinho ou madrinha

  • Homens e mulheres maiores de 25.
  • Ter disponibilidade de tempo, com possibilidade de estar com o afilhado ao menos duas vezes por mês.
  • Disponibilidade afetiva para se relacionar e conviver com as crianças e adolescentes por um longo prazo.
  • Residir na cidade de São Paulo.
  • Apresentar documentação.
  • Passar por uma formação e seleção.
    (Fonte: Instituto Fazendo História)

Mudança de paradigma

No Brasil, o olhar sobre os serviços de acolhimento passou por uma longa trajetória de mudanças, como atenta a coordenadora geral do Instituto Fazendo História, Isabel Penteado. Antes considerados espaços de abandono, caso de orfanatos, educandários e colégios internos, amparados pelo Código do Menor, essas instituições se reorganizaram a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990.

A coordenadora do Instituto, Isabel Penteado, reforça a necessidade de priorizar e investir no retorno dos jovens aos núcleos familiares naturais ou às famílias extensas, composta por avós, tios ou parentes próximos. “A resposta do Brasil para o cuidado com crianças e adolescentes separadas das famílias de origem ainda é a institucionalização, mas estamos evoluindo”, afirma Isabel.

A adoção, portanto é a uma das últimas medida a ser tomada

O procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná e especialista na leitura do ECA, Alberto Velozzo Machado, explica que a mudança de paradigma com a nova legislação foi colocar as crianças e adolescentes no centro da discussão sobre políticas públicas. “A partir do ECA, menores de 18 anos são considerados sujeitos de direitos na sociedade, dentro do conceito de seres humanos íntegros, e não apenas destinatários de benevolência ou filhos dependentes”.

Apesar de algumas mudanças significativas com o ECA, Isabel Penteado aponta outra série de documentos que foram essenciais para amparar os princípios e as práticas dos serviços de acolhimento nas últimas décadas, como o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (2006), a Lei 12.010 (de 2009), e as Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (2009).

“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (Art. 4º, ECA)

“Todos os processos educacionais e culturais que precisam ser garantidos são voltados para a emancipação desses jovens, para que futuramente possam se autodirigir”, afirma Alberto Vellozo. Nesse sentido, o procurador reforça a importância de convivência familiar e comunitária para a possibilidade do desenvolvimento integral do ser humano em cada fase da sua existência.

No espaço entre os serviços de acolhimento e o retorno às famílias naturais ou a possibilidade de adoção, muitos caminhos de cuidado tomados por uma rede de apoio se tornam essenciais para auxiliar a busca por reparação e fortalecimento dessa autonomia. Alguns desses caminhos encontram o início da vida, quando a criança ainda dá os primeiros passos. Outros, como no caso de Sandy, momentos singulares como a adolescência. E, embora a vida não forneça muitos mapas para lidar com as inúmeras encruzilhadas desse processo, o coração parece ser uma bússola indispensável. Porque, na realidade, nem sempre dar o primeiro passo significa saber onde vai chegar. Mesmo assim, Vanessa garante: “É emocionante. Sou apaixonada por ela e estou pronta para o que der e vier”.

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