Antologia de literatura indígena reúne histórias de dez etnias

"Sem mergulhar na ancestralidade, a preocupação com a Amazônia não passará de fogo de palha", reflete Mauricio Negro, organizador da Antologia "NÓS"

Renata Penzani Publicado em 23.09.2019
Foto de um mar com coqueiros e um sol refletindo na água, juntamente com o rosto de um animal. A foto inteira está com a cor salmão
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Resumo

Organizada por Mauricio Negro, o livro "NÓS: uma antologia de literatura indígena" reúne dez histórias contadas por escritores indígenas de diversas nações.

Os mitos, as histórias orais, o jeito de se relacionar com o Sol, a terra, a lua e os movimentos da natureza; o modo de usar a palavra e seus significados, as narrativas na essência de enxergar o mundo. Tudo isso é parte fundamental das culturas indígenas. Para a sorte das crianças da cidade, essas que nem sempre podem conhecer o jeito de viver dos povos originários, a Companhia das Letrinhas acaba de lançar um livro que traz todo esse universo para mais perto. O livro “NÓS – Uma antologia de literatura indígena” foi organizada e ilustrada pelo pesquisador Maurício Negro, artista das palavras e das imagens.

A obra, cuja confecção ultrapassou um período de trinta anos, traz um compilado de mitos de origem – aqueles que narram como nasceram as coisas, que costumam fazem tanto sucesso com as crianças -, histórias de amor, fábulas e muitas outras formas de narrar o mundo e o cotidiano nas aldeias pelo ponto de vista de quem tem mais familiaridade com eles.

Capa do livro "Antologia de literatura indígena" mostra a espécie de um indígena na capa
Sobre o livro

A menina Yacy-May era tão especial que fez com que o sol se apaixonasse por ela, deixando a lua enciumada. O peixe-boi surgiu a partir da união de Guaporé, filho do grande chefe dos peixes, com Panãby’piã, filha do governante dos Maraguá, e sinalizou a paz entre os humanos e os peixes. A velha misteriosa Pelenosamo tem um dia a casa invadida por uma garota curiosa, que resolve investigar o que ela fazia com os galhos secos que sempre levava recolhia e não dividia com ninguém. Essas são algumas prévias das histórias reunidas em “NÓS”

Narrativas de “NÓS – Uma antologia de literatura indígena”

As dez histórias presentes aqui são contadas por escritores indígenas das etnias brasileiras Mebengôkre Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ Bakairi. “Os indígenas podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior, como diria o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

No final de cada narrativa, há um texto contando a história daquela etnia, para aproximar os leitores do seu modo de viver, além de um glossário com algumas palavras comuns do dia a dia aquele povo, como “Borum”, que significa “pessoa de verdade para os Krenak, ou “memprire”, que é “criança” na língua da nação Mebemgokré Kayapó.

O título “NÓS” faz alusão ao mesmo tempo ao pertencimento (ou falta dele), tão natural para quem nasce da terra e dela se nutre diariamente, como acontece com os povos indígenas, e também aos entranhados nós que nos dividem, enquanto civilização branca e urbana, das origens e tradições. É o que escreve Mauricio Negro no texto de apresentação do livro.

“A chamada ‘literatura indígena’ carrega esse desejo profundo de reatar e fortalecer os laços entre todos nós”

O escritor Daniel Munduruku deu suporte à publicação, e assina o texto da contracapa. “As sociedades indígenas são movidas pela magia dos mitos – narrativas ancestrais que apresentam o nascimento do mundo, dos seres e dos homens. Ouvi-las, senti-las e lê-las é mergulhar em um infinito que nos une com o desconhecido”, diz o autor.

O Lunetas fez uma entrevista com Mauricio para conhecer melhor o processo de publicação da antologia. Quando perguntamos a ele o que, como artista, ele deseja que as crianças sintam com este livro, ele remete à conexão com a natureza e seus mistérios, tão pouco experienciados por quem vive longe dela. “Desejo que matem as saudades do mato, feito a criança que eu fui”.

Leia o papo na íntegra com Mauricio Negro

Lunetas – Quanto tempo levou a organização de “NÓS – Uma antologia de literatura indígena”? E como foi o processo, da ideia à publicação de fato?
Mauricio Negro – Levou mais ou menos uns trintas anos! Porque encaro esse projeto editorial como uma decorrência natural de uma longa jornada de (arte)vismo socioambiental e identitário pelas trilhas que a escrita e a ilustração têm me proporcionado. E me refiro sobretudo a essa autêntica e potente produção autoral indígena, que assumiu o seu protagonismo literário há mais de três décadas, junto da qual me sinto aconchegado. Agradeço, valorizo e reverencio a companhia de tantos autores de diferentes etnias nos mais diversos projetos.

Sobre essa publicação em particular, carece esclarecer que planejei antes organizar uma coleção de obras de autores indígenas. Algo que inclusive já tinha experimentado. A reunião de dezenas de textos foi facilitada pelo chamamento do Edital PNBE Indígena de 2015. Abria-se ali uma inédita possibilidade de compras governamentais de obras indígenas em grande escala, para o abastecimento de escolas e bibliotecas públicas brasileiras.

Tão logo foi publicado o tal edital, fui procurado por várias editoras e autores indígenas. Consegui ajudar a viabilizar alguns livros, dois dos quais também ilustrei. Passado o entusiasmo, e após o investimento geral na produção daquelas obras, veio a frustração. A crise econômica já corria e o resultado daquele edital jamais foi anunciado.

O que fazer com um “passivo” de textos bacanas reunidos e outros tanto coletados, além daqueles que as editoras assimilaram? Foi quando conheci a Daniela Duarte, na época ainda editora da Alfaguara, que acolheu o projeto editorial. Para viabilizá-lo, sugeriu converter a coleção numa antologia de narrativas indígenas. Mais tarde, com a fusão de alguns grupos editoriais, decidiu-se publicar NÓS pela Companhia das Letrinhas. A partir dessa definição, seguimos adiante, costurando ideias, desejos e possibilidades.

Assinada por dez autores indígenas, por mim organizada e ilustrada, NÓS é uma obra coletiva, com o lastro editorial da Companhia das Letrinhas. E teve ainda o apoio de alguns especialistas, como o escritor Daniel Munduruku e a antropóloga Fany Ricardo, do Instituto Socioambiental (ISA).

Qual a contribuição de um livro como “NÓS – Uma antologia de literatura indígena”, sobretudo neste momento, em que as disputas territoriais e o desmatamento ganham aval máximo no país?
MN – É ver para crer. Raras vezes aquilo que projeto com entusiasmo e honestidade encontra ressonância ou vai além de um frisson inicial. Como prever o modo que as pessoas assimilarão hoje uma publicação como essa? E caso ela desperte o interesse, tampouco dá para antecipar a tônica do envolvimento de cada leitor. Eu chacoalho o maracá por isso, é claro! Mas sei que persiste, apesar de amplos esforços, um abismo identitário entre os brasileiros e as raízes mais profundas, de uma pré-brasilidade.

É estranho sempre voltarmos à projeção da tal identidade nacional, que parte do princípio da integração que desintegra, desconsiderando a pluralidade constituinte de um país de dimensões continentais e culturas diversas.

“O desconhecimento da maioria desemboca em intolerância”

A produção de conteúdos intelectuais, artísticos, culturais, filosóficos, científicos precisa ser atualizada e fortalecida se desejamos nos manter críticos e conscientes. É evidente que essas áreas e saberes nos permitem compreender e acomodar as diferenças, com serenidade, pelo entendimento de que tudo e todos estão relacionados. Uma antologia literária, de certo modo, é quase uma metáfora disso. Porque reúne perspectivas distintas, lado a lado, registradas em um único volume e sob o mesmo status. É por isso que batizei a obra de NÓS. Porque é de nós que se trata. Na capa do livro, sobre o peito índio estão os nomes dos dez autores. Cada qual vinculado à memória das suas gentes e culturas heterogêneas. Todos somos NÓS.

Os povos indígenas e as comunidades que mantém seus costumes tradicionais e alianças com o meio em que vivem podem nos ensinar como viver melhor em sociedade, algo que seguimos perdendo. Sentir-se parte da natureza. E não dotado de uma natureza à parte.

“No momento em que perdemos a perspectiva do macro, o coletivo sucumbe, os nexos desaparecem, e ninguém mais sente vínculos, responsabilidades ou identificação”

Se um indivíduo é incapaz de perceber os tantos Brasis que nos compõem, resistindo à monocultura do pensamento, as expressões culturais dos povos indígenas dependerão apenas da curiosidade pontual. O cerrado e a mata atlântica já muito sofreram com o nosso abandono silencioso. Se realmente amamos um lugar, porque maltratá-lo?

“Sem um mergulhar na nossa ancestralidade, a preocupação com a Amazônia também não passará de fogo de palha”

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Divulgação/Companhia das Letrinhas

Trecho do livro “NÓS – Antologia de literatura indígena”, organizada e ilustrada por Mauricio Negro

Lunetas – A tradição oral dos povos originários tem um jeito cuidadoso de lidar com a memória. Estamos esquecendo o valor das histórias?
MN – Narrar dá o poder de entreter, encantar, enternecer, mover, aproximar, confortar, convencer, curar. Conforme o contexto, tiramos também alguma lição, partilhamos conselhos, normas de conduta, traçamos paralelos e norteamos os caminhos.

“As histórias contadas antigas criam novos ou fortalecem antigos vínculos de compromisso, de afeto, de pertença. A memória é a base comum de transmissão de saberes”

Daí as aliterações, a repetição de passagens pelo narrador. Conta aquele que mais viveu, que ostenta orgulhoso na carne e na alma as suas rugas e cicatrizes. As gerações seguintes passam e repassam, e também atualizam a partilha narrativa que imanta e segue adiante.

Essas histórias sobrevivem pela consistência dos vínculos. Sem vivência prática, o conhecimento raro vira sabedoria. E aí, tatuagens serão só trucagens. E o vazio narrativo, ocuparemos com modismos e tendências. Somos feitos de histórias. Devíamos procurar na memória coletiva, do nosso povo, família, lugar, aquilo que nos dá sentido. Do contrário, temos cada vez mais compromissos e prazeres voláteis.

“Vivemos em cidades feito personagens de um blockbuster, naquela hipérbole alucinada, onde não há tempo de refletir nem de admirar a paisagem”

Que empatia podemos desenvolver sob tais condições? Estamos em dissonância com o diapasão natural.

O que os indígenas vêm tentando nos ensinar, e que ainda não aprendemos?
MN – Será que há pretensão de ensinar? Acho que há uma disposição. Resta saber quanto a sociedade não indígena está a fim de aprender, de reavaliar os paradigmas e modelos normativos. Ainda mais diante do colapso civilizacional que estamos acompanhando.

“Hoje, os cerca de novecentos e tantos mil indígenas de diferentes povos querem assegurar o direito de sonhar, sob chuva ou sol, e de pisar o chão físico e metafísico de suas tradições”

Desejam o direito de viver à sua maneira, com dignidade, autonomia, paz e liberdade. Inclusive para interagir com a sociedade dominante, sempre que preciso, para se atualizar. Não querem colonizar nem ser mais colonizador por ninguém. Manifestam o desejo de convivência harmônica entre todos.

“Enquanto a sociedade dita ‘branca’, urbana, ocidental, alienígena ou sei-lá-o-que permanece alheia ou pouco familiarizada sobre as particularidades de culturas ancestrais, os povos indígenas têm se articulado politicamente”

Nos últimos anos, elas vêm se apropriando do ferramental tecnológico e cultural alheio para aditivar as suas tradições, aprendido a manejar os códigos sociais da sociedade dominante, buscado formação superior, etc. A recíproca, por enquanto, ainda é imprecisa.

Como mediar um livro como este com as crianças, considerando que são os adultos os primeiros a se encantar pelos livros que apresentam às crianças?
MN – Os adultos sempre estão nessa posição até ingrata de tutores , que filtram tudo e pré-selecionam os conteúdos. Isso não seria um problema tão grande se a gente soubesse o que está fazendo. Mas vejo pais batendo cabeça por aí, honestamente.

“O mundo que projetamos, talvez ingenuamente, era para ser outro. As escolas têm sido encarregadas então de preencher certas lacunas. E nem sempre há coesão, formação, condições de vida e trabalho razoáveis para os educadores”

O país, quando investe em educação, investe mal. Os livros têm entrado pela porta da escola, a gente sabe, mas a literatura deveria fluir livre e solta feito um rio. Porque deveria ser compreendida e estimulada como parte da cultura. Para tanto, tem que estar à mão. Tem que ser cotidiana. Tem que ser alimento. Tem que dar prazer.

No panorama atual, com todas essas fragilidades e ameaças, temos que dar um voto de confiança ao discernimento das próprias crianças, atentar às rodas de conversa e exemplos no seu convívio. Porque nessas ocasiões pintam os melhores parâmetros para toda vida. Boa parte das minhas leituras da infância foram influenciadas informalmente por amigos.

“Essas conversas podem rolar em casa mesmo, com os pais, avós ou irmãos. Podem se abrir em qualquer lugar, também na escola, mesmo entre colegas”

O que você gostaria que as crianças sentissem após essa leitura?
MN – Prazer. Revelação. Enlevo. E no contraponto comparativo, poder se reconhecer. Desejo que alguns matem as saudades do mato, feito a criança que eu fui. Do cheiro de terra molhada, da água gelada de rio, da fina camada de orvalho matinal, do vento balançando a copa das árvores, dos pássaros, das frutas e espinho no pé. Do assombro com a tempestade. Do mistério da noite e do canto do urutau. E àqueles que nada disso conhecem, que possam para lá se transportarem.

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