No mundo da imaginação, um menino da cidade e um preá (animal roedor) da Mata Atlântica fazem companhia para suas amigas no mundo real. Respectivamente, Ana e Denízia, as criadoras dessas amizades imaginárias tão presentes em suas vidas no passado. Hoje, os amigos moram em um lugar especial de suas memórias.
Ana Cavalari, 36, educadora física, e Denízia Kawnay Fulkaxó, 43, escritora, valorizam não terem sido, na infância, impedidas de imaginar nem constrangidas pelas amizades que só existiam em seus mundos interiores. Apesar das culturas diferentes em que nasceram e cresceram — uma é branca e a outra, indígena — elas compartilham dessa vivência. Ambas defendem que as crianças tenham o direito de imaginar livremente, inclusive uma amizade imaginária.
“Criança que não pode imaginar não é criança”, diz Cavalari. Ela conta que seus pais e irmãs tratavam com naturalidade o fato de ter uma amizade imaginária, ainda que na cultura não-indígena tais amizades possam causar preocupação para os familiares ou até medo entre outras crianças. “Não lembro de sentir vergonha. Falava abertamente sobre Dudu, o meu amigo imaginário.”
Fulkaxó complementa que, a partir da cultura de seus povos Kariri-Xocó e Fulkaxó, imaginar é “se conectar com outras dimensões e outros seres”. Portanto, para ela, as amizades imaginárias são, na verdade, amizades estabelecidas com seres que estão em outras dimensões.
“Na cultura do meu povo é normal e habitual que as crianças conversem e até brinquem com outras crianças e outros seres do mundo espiritual — como era comigo e o preá. Isso não é considerado negativo nem precisa ser repreendido. É até incentivado”
Por que as crianças criam amizades imaginárias?
A pediatra Luiza Menezes, autora do livro “Livres brincar” e produtora de conteúdo no perfil “Infâncias fora da caixa”, comenta que criar uma amizade imaginária pode cumprir diferentes funções no momento de vida da criança.
“A mais importante função de uma amizade imaginária é a externalização de uma necessidade interna da criança, não necessariamente afetiva, mas sobretudo lúdica.”
No mundo imaginário, com suas amizades inventadas ou não, a criança também pode encontrar respostas para conflitos do seu dia a dia, opina Cavalari, que percebe o quanto a imaginação torna tudo mais leve. Ainda que ela não lembre quando Dudu surgiu e quando partiu, para Cavalari, ter dividido a infância com esse amigo foi um privilégio. “Sempre lembro dele com muito carinho.”
Fulkaxó aponta outro aspecto sobre as amizades imaginárias na cultura indígena de seus povos. “Uma vez que as amizades imaginárias também podem simbolizar uma conexão espiritual, entendemos que impedir uma criança de se relacionar com ela mesma e com a sua espiritualidade é privá-la de viver a sua plenitude. Então, isso certamente trará grandes problemas que podem repercutir negativamente em suas vidas.”
Uma companhia para brincar
A pediatra Menezes afirma que “praticamos a imaginação, principalmente por meio das brincadeiras da infância. E é a partir daí que vivenciamos o desenvolvimento psíquico, cognitivo, motor e emocional”. Ela completa explicando que “as amizades imaginárias cumprem a função de companhia, objeto de transição, de apego, além de ser uma ferramenta para o livre brincar e o brincar simbólico”.
Eram exatamente nesses momentos de brincadeira que Dudu, o amigo imaginário de Cavalari, aparecia. Eles se divertiam no esconde-esconde, na cidade de Indaiatuba (SP). Mas também assistiam TV juntos. “Lembro de deixar a TV ligada enquanto eu jantava e pedia para os meus pais não desligarem, porque o Dudu estava acompanhando os programas”, lembra.
Já em algum lugar da aldeia do povo Kariri-Xocó (AL) em que a escritora Fulkaxó cresceu, o preá vinha visitar durante as brincadeiras de casinha. “Através das minhas brincadeiras de paneladas, ficava me imaginando adulta fazendo comida para meus pais em nossa aldeia”, conta. E, às vezes entretida, ela se assustava achando que o seu preá estava sob perigo. “Tinha um preá que meu irmão adorava caçar! Quando eu via isso acontecendo, eu ia atrás do bichinho para pegá-lo e escondê-lo. Não queria que meu irmão o matasse. Os animais eram meus amigos na imaginação e no mundo real”, diz Fulkaxó. Por vezes ela se pegava pensando como seria uma vida sem a natureza, sem os animais, sem o seu preá.
Amizades imaginárias na ficção
Atravessando gerações, as amizades imaginárias já apareceram em diferentes histórias da cultura pop. Confira:
Visitando décadas passadas, é possível lembrar de Haroldo (ou Hobbes, em inglês), amigo imaginário de Calvin cuja forma era de um tigre bastante sábio. Ambos foram protagonistas de uma série de tirinhas escritas e ilustradas por Bill Watterson entre os anos de 1985 e 1995.
Mais recentemente, em 2015, o filme Divertida Mente, da Pixar, apresentou a história da menina Riley, em plena fase de transição entre a infância e a adolescência. No filme, ela teve momentos de aventura e consolo com seu amigo imaginário Bing Bong, o elefante cor de rosa, feito de algodão doce, de quem, ao final, Riley teve que se despedir.
Uma amizade para ser guardada
A amizade imaginária costuma aparecer quando a criança tem entre 2 e 3 anos e desaparecer entre 7 e 9 anos, como explica a pediatra. “Essa é uma vivência transitória e comum. Entre 50 a 65% das crianças podem apresentar amizades imaginárias durante a primeira infância”, diz Menezes.
Em outras palavras, em algum momento, as amizades imaginárias não serão mais companhia para as crianças que as criaram – e isso é saudável. Justamente pelo caráter transitório, a existência de uma amizade imaginária não deve ser motivo de preocupação para os cuidadores. Mas a perspectiva deve mudar se a criança estiver se afastando da realidade para passar mais tempo no mundo inventado, com sua amizade imaginária.
Quando se preocupar com as amizades imaginárias?
A pediatra Luiza Menezes lista alguns comportamentos que devem soar como sinais de alerta, indicando a necessidade de os cuidadores buscarem ajuda profissional para as crianças.
- dependência emocional da amizade imaginária;
- comprometimento das brincadeiras com pessoas reais;
- mudanças de comportamento repentinas associadas aos jogos com a amizade imaginária;
- terceirização da culpa por algo errado que tenha feito.
Continuar imaginando
Nem todas as crianças terão amizades imaginárias, mas, para aquelas que tiverem, o adeus não significa uma despedida para a imaginação. Menezes afirma que a “imaginação é inerente ao ser humano”. Por isso, a criança deve ser sempre incentivada a praticá-la, para que tenha a oportunidade de vivenciar essa experiência tão importante para o desenvolvimento integral, promovendo a espontaneidade e a criatividade.
Fulkaxó complementa que a imaginação é como um poder. Assim, as crianças conseguem elaborar suas capacidades e funções socioculturais, preparando-as para o futuro em que terão que acessá-las e desempenhá-las na realidade.
“Se eu pudesse dizer algo às famílias, diria: fiquem felizes por suas crianças imaginarem, e até mesmo terem amizades imaginárias. Isso as tornará adultos mais criativos e sem tantos medos”, aconselha Cavalari, que será sempre a amiga de Dudu.
Livre brincar e brincar simbólico
O livre brincar é aquele que acontece sem a condução de um adulto, por livre e espontânea vontade da criança. Por sua vez, o brincar simbólico diz respeito a brincadeiras que imitam situações do seu cotidiano na brincadeira, como quando brinca de cozinhar.