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Leonel, 7, acompanha a família no projeto Canteiros Coletivos, em Salvador (BA). "Eu plantava para a cidade ficar com sombra e melhorar a temperatura do planeta", diz.

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Pietra, 12, é irmã de Leonel, e junto da mãe, Tarsila de Carvalho, ajuda no Canteiros Coletivos entendendo cada vez mais a importância de agir para conter o aquecimento global.

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Em Salvador, o projeto Jardim de Chuva Pedagógico é reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente como uma solução comunitária baseada na natureza. Nas escolas públicas, alunos aprendem a reutilizar a água da chuva para cultivar plantas e outras práticas sustentáveis.

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Altas temperaturas alteram a rotina das crianças e das escolas

Altas temperaturas: Imagem de capa mostra um menino vestindo uniforme escolar e segurando uma garrafa de água.

No Rio de Janeiro, Nina, de 14 anos, tem passado mais tempo em casa por causa das altas temperaturas. Como ela vai e volta a pé da escola todos os dias, já sente a diferença no clima. “Não é um caminho longo, pois são 15 minutos. Mas às sete da manhã já está quente”, diz. Com o choque térmico de entrar em uma sala de aula muito fria, por causa do ar condicionado, Nina está sempre resfriada.

O nível 4 de calor, um dos mais críticos considerando uma escala que vai até 5, chegou no Rio de Janeiro esta semana. Para amenizar a situação, a prefeitura espalhou pontos de hidratação com bebedouros em diversos bairros. Além disso, as escolas receberam recomendações de evitar atividades externas e o governo do estado autorizou que escolas estaduais sem ar condicionado reduzam a carga horária presencial em 50%. Isso porque os termômetros marcaram 42°C nos últimos dias. Porém, a sensação térmica, conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) é de até 60°C.

Só nos dois primeiros meses de 2025, o Brasil já registrou três ondas de calor, segundo Inmet. Seis estados estão sob alerta: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina e Paraná. No entanto, o calor se estende até Goiás e Bahia. Já no Rio Grande do Sul, mesmo sem estar na lista, os termômetros passaram de 40°C. Na cidade de Quaraí, fronteira com o Uruguai, a temperatura de 44,8°C foi a mais alta em cem anos, de acordo com o Climatempo.

Essa situação fez o governo do estado adiar o início do ano letivo nas escolas públicas, a pedido do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), que conseguiu a ação na Justiça. Rosane Zan, presidente do CPERS, afirma que a mobilização ajudou a abrir um debate sobre a infraestrutura escolar em meio à crise climática. “Isso foi um alerta, já que muitas escolas do Rio Grande do Sul não têm ar-condicionado e outras sequer foram reestruturadas desde as enchentes do ano passado”, conta. Segundo dados do Censo Escolar 2023, 70% das salas de aula de escolas públicas de ensino do país não possuem climatização adequada.

Adultos e crianças já entendem que a crise precisa de ações concretas

Equipar e reformar as escolas para lidar com ondas de calor e outros efeitos da crise climática, como enchentes, secas, incêndios e tempestades é o primeiro passo, diz Rosane Zan. Mas para uma transformação mais profunda, ela aposta também em novos projetos pedagógicos. “As escolas precisam incluir o debate climático na vida dos estudantes e professores. Isso exige políticas públicas e a união de toda a sociedade para enfrentar os impactos cada vez mais intensos dessas mudanças.”

Nina também compreende que o calor intenso não se resolve apenas ligando o ar condicionado, pois é necessário medidas mais eficientes de toda a sociedade. “Acho que a escola não deve só ensinar a gente a se proteger, mas também a cuidar do planeta”, afirma. A estudante conta que até o 9º ano não estudou sobre o aquecimento global, mas já aprendeu, na prática, que o assunto é urgente.

“Eu fico com medo de estar herdando um planeta com tantos problemas que não foram causados por adolescentes ou crianças.”

“A gente não sabe o que vai acontecer com as gerações futuras”, diz Nina. Para ela, o alerta maior foi quando quase desistiu de ir ao show da cantora Taylor Swift, em novembro do ano passado. Na época, uma jovem morreu após passar mal por exaustão térmica dentro do show. “Aquilo foi terrível. Eu fiquei muito preocupada porque minhas amigas e meu professor estavam no mesmo setor em que a menina morreu”, lembra. “Mais perto do dia de eu ir, acabei ficando doente por causa do estresse, até tive febre.”

Leia também: Ecoansiedade: quando a emergência climática assusta as crianças

Famílias podem incentivar o contato saudável com a natureza

Nina espera que o debate sobre as mudanças climáticas chegue logo às aulas, pois assim, ela poderá contar aos colegas sobre a experiência que já tem em casa. “Essa é uma pauta de nossas conversas, a gente reage às notícias e falamos sobre o que é nossa realidade, de morar em uma cidade muito quente, com o agravante de o sol se pôr bem na frente da nossa casa”, conta a mãe de Nina, Gabriela Carriço.

A partir de 2025, os currículos de educação ambiental nas escolas do Brasil terão foco maior em mudanças climáticas, proteção da biodiversidade e mitigação de riscos socioambientais. Conforme prevê a Lei 14.926/24, que altera a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) para incorporar esses conteúdos.

Fora da escola, a família de Nina percebe que “o tema se impõe a partir da realidade”, como destaca o pai, Ednaldo Santos. Em casa, eles não têm ar condicionado e usam outros recursos para fugir do calor, como ventilador de teto e películas na janela. Porém, o projeto mais promissor é a “florestinha” que plantaram na varanda do apartamento, justamente para ter mais conforto térmico.

No início, as plantas chegaram para dar sombra, mas hoje dão frutos e ervas: jabuticaba, manga, tomate, acerola, pitanga, amora, biri-biri, boldo, alecrim, mirra, manjericão. A composteira, que fica ao lado, recicla o material orgânico da cozinha e uma caixa de abelhas brasileiras sem ferrão ajuda a polinizar essas plantas. A família leva a outra parte do lixo reciclável para um parque perto de casa. Desse modo, uma coisa foi levando a outra e, quando perceberam, tinham montado uma ação integrada de sustentabilidade.

Nina, 14 anos, já sente a diferença do calor intenso ao caminhar até a escola, no Rio de Janeiro. Em casa, ela e a família cultivam uma área verde para amenizar as altas temperaturas.

Pesquisa confirma que escolas brasileiras estão em ‘ilhas de calor’

A relação das crianças com a natureza não precisa ser construída apenas a partir de eventos climáticos extremos. Isso afeta a possibilidade de manter uma relação saudável com o ambiente, por isso, é importante induzir crianças e adolescentes a terem contato genuíno com a natureza em casa e, principalmente, nas escolas, lugar de maior socialização.

No entanto, a situação atual das escolas não privilegia essa ação e revela que ainda há desigualdades no acesso a um ambiente mais verde e seguro. De acordo com um estudo realizado em escolas de todas as capitais e conduzido pelo MapBiomas e Instituto Alana, instituições que estão em áreas mais quentes têm menos verdes. Essa foi a conclusão em relação à presença de ilhas de calor e localização das escolas pesquisadas. Parte do estudo diz:

“Para muitas crianças, a escola pode ser o único lugar de brincar e aprender na natureza. Ao mesmo tempo, o clima mudou e é preciso identificar as escolas mais vulneráveis às ondas de calor, alagamentos, enchentes e deslizamentos e agir para reduzir riscos e aumentar sua resiliência. A natureza deve ser fonte de saúde e aprendizado e não uma ameaça para as crianças brasileiras.”

A investigação aconteceu em 2023 e comparou a temperatura do chão de cada escola com a média de temperatura das áreas urbanas onde estão localizadas. Se o chão marcasse níveis muito maiores que a média da cidade, indicava que a escola estava em uma ilha de calor. Dessa forma, o resultado mostrou que 6 em cada 10 escolas do país estão em territórios com temperaturas, pelo menos, 1°C acima da média de suas respectivas capitais.

Ao analisar quem são os mais afetados, o racismo ambiental foi evidenciado, pois 36,4% das escolas com maioria de alunos negros registraram temperaturas 3,6°C acima da média da sua capital, enquanto escolas com maioria de alunos brancos, o índice caiu para 16,5%.

Fonte: Pesquisa “O acesso ao verde e a resiliência climáticas nas escolas das capitais brasileiras” / Instituto Alana e MapBiomas.

Para professores e alunos, estudar em um lugar com calor extremo é inviável, conforme aponta artigo do Centro sobre a Criança em Desenvolvimento da Universidade de Harvard, dos Estados Unidos. O estudo mostra que as altas temperaturas afetam o desenvolvimento cerebral das crianças e “o desempenho escolar diminui à medida que as temperaturas aumentam”. O documento registrou que em Nova York, por exemplo, em dias com temperaturas acima de 38°C, a aprendizagem diminuía até 50% em comparação com temperaturas amenas.

A pesquisa do MapBiomas lista cinco ações que precisam ser priorizadas para beneficiar os estudantes diante da onda de calor e crise climática:

  • Desemparedar as escolas
    Aproveitar os espaços externos, dentro e fora delas, e adotar práticas pedagógicas que favoreçam atividades ao ar livre, tanto para brincar quanto para aprender.
  • Remover o concreto
    Nos espaços abertos, substituir o cimento por áreas verdes e incentivar o uso desses espaços para brincar, aprender e para a convivência comunitária nos finais de semana.
  • Multiplicar praças e parques
    Priorizar o entorno das escolas na hora de criar novas praças e parques — e ampliar a área das já existentes.
  • Refrescar as escolas
    Planejar novas escolas e reformar as existentes priorizando o conforto térmico. Adaptar as rotinas para que atividades ao ar livre ocorram nos horários mais frescos do dia ou à sombra.
  • Priorizar escolas
    Políticas públicas de prevenção e redução de riscos devem ter como foco de investimento reformas e construção em áreas seguras e saudáveis.

Crianças se envolvem em soluções com natureza

Em Salvador, 50% das escolas estão em bairros vulneráveis a efeitos da crise climática e 87% não têm áreas verdes. Nos dois casos, a cidade lidera o ranking de todas as outras capitais do país. Diante disso, a ativista socioambiental e permacultora Débora Didonê observa que o calor extremo exige uma apuração de dados mais trabalhosa. Isso porque não é algo tão nítido, como uma enchente, mas que gera impactos à saúde e mudanças de comportamento. “Já tem criança falando que não consegue mais brincar porque é muito quente na hora do recreio ou que não quer fazer a aula de educação física sem um ambiente adequado para isso”, conta.

Desde 2012, Débora atua na modificação do espaço urbano de Salvador, que já perdeu mais de 80% de sua Mata Atlântica. O movimento Canteiros Coletivos, fundado por ela, devolve à cidade o direito à natureza em oficinas de permacultura. “É um trabalho de incidência política, discussão de planos, projetos e leis. Mas eu o defino mesmo na sensibilização de moradores da cidade”, explica. “São pessoas que se sentem parte de ações até pequenas, mas efetivas, e dali já entendem que esse coletivo consegue promover transformação.”

Os irmãos Pietra, 12, e Leonel, 7, participaram desse movimento quando eram mais novos e contam que isso deu a eles uma outra consciência sobre a cidade. “Todo esse desmatamento é o que provoca o aquecimento global. Por isso que está tendo essa onda de calor, que vai dar muito trabalho para as crianças no futuro”, diz Pietra. Ao mesmo tempo, ela afirma que tem confiança por causa de tudo o que está aprendendo. “A gente vai contribuir com o meio ambiente”. Leonel confirma: “Eu participava dos Canteiros quando tinha um ano de idade. Eu plantava para a cidade ficar com sombra e melhorar a temperatura do planeta.”

Embora fique triste ao ver o que está acontecendo com a natureza, Leonel se orgulha de fazer sua parte. “Na minha casa, a gente separa o lixo, faz compostagem, planta frutas, tem energia solar e eu sempre estudo sobre o aquecimento global”. A mãe, Tarsila de Carvalho, conta que o projeto é a base para que a família compreenda outras bandeiras para a sustentabilidade. “Quis que meus filhos estivessem envolvidos nesse cuidado com o meio ambiente, participando de hortas urbanas. Nas oficinas, também realizamos mamaços, defendendo que amamentar é um ato ecológico”, defende. “Posso afirmar, então, com felicidade que nossa família está contribuindo de muitas maneiras para a saúde do planeta.”

Outra ação do mesmo projeto se chama Jardim de Chuva Pedagógico. Documentada na cartilha de Soluções Comunitárias Baseadas na Natureza, do Ministério do Meio Ambiente, esta dinâmica acontece ao ar livre, no pátio do Colégio Estadual Professora Marileine da Silva. Crianças e adolescentes criam um reservatório para a água da chuva, contribuindo para manter a umidade e descompactar o solo. Assim, o cultivo de plantas e árvore fica mais fácil. “Eles aprendem a fazer a leitura das águas, a leitura do solo, entendendo também como o planejamento urbano interfere nas comunidades”, conta Débora. “Quando chove, tudo fica alagado, mas não tem água potável. Aí a chuva, que é uma solução, vira um problema para a cidade. Queremos reverter isso.”

Graciele Oliveira, professora que atua no projeto, explica como a ação sensibiliza estudantes diante de um cenário desafiador na cidade. Ela afirma que os alunos ampliam a consciência ecológica e tornam-se agentes de transformação em seus territórios.

“Ter esse Jardim na escola é essencial para formar estudantes críticos, que aprendem na prática sobre sustentabilidade, preservação ambiental e estratégias naturais para evitar alagamentos.” 

‘O ativismo climático das crianças precisa ser rebelde’

Como falar com as crianças sobre a crise climática? Elas já sentem diariamente os efeitos de enchentes, altas temperaturas e outros eventos extremos. Por isso, essa é uma conversa que precisa acontecer com honestidade, afirma o coordenador de política internacional do Observatório do Clima, Claudio Angelo. “Acho que a melhor forma de evitar a ansiedade climática é ter muita raiva”, defende.

Ele cita o discurso da ativista Greta Thumberg, do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, de 2020. “Ela dizia: ‘eu não quero que ninguém fique passando a mão na minha cabeça. Eu quero que vocês entrem em pânico, porque a nossa casa está pegando fogo’”. Para Angelo, ações individuais não funcionam sem voto ou políticas públicas. Além disso, afirma que “o ativismo de crianças e jovens deve ser crítico e rebelde”. Confira as principais orientações:

Não dá para dizer que “é um problema menor” e que “vai dar tudo certo” porque a situação do planeta é crítica e as crianças e adolescentes já têm esse entendimento. O maior movimento de massa sobre o clima foi criado por uma adolescente de 15 anos, Greta Thumberg. Ela mobilizou jovens no mundo inteiro e virou uma força política, indignada com a gravidade da crise.

A mudança climática é basicamente um problema de regulação, por isso, é preciso influenciar um voto consciente. Atitudes individuais como reciclar o lixo, parar de usar sacolinha plástica são importantes, mas não é só isso que vai resolver. São as pessoas eleitas que tomam atitudes maiores e essa consciência precisa ser criada em casa e na escola.

Explique que a desigualdade social e a pobreza já existiam antes do agravamento da crise climática e que os efeitos disso serão diferentes para quem vive em situações de vulnerabilidade. Também é importante falar do racismo ambiental e do quanto isso precisa ser combatido.

Fiquem atentos aos movimentos de jovens sobre o clima. Incluam as crianças nas ações e observem para que a causa não seja cooptada por governos ou empresas em discursos rasos, que não vão resolver os problemas sociais da crise climática.

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