Após a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, populações que viviam às margens do Rio Xingu têm geração de crianças “emparedadas” em periferias
Projetos desenvolvimentistas, como o de Belo Monte, deslocaram populações que viviam no rio Xingu para bairros periféricos de Altamira. Hoje, a realidade é uma geração de crianças "emparedadas", imersas em violência e que não se entendem como parte da Amazônia.
Para quem nasceu naquelas águas, colhendo alimento in natura e transportando carga em canoa, é estranho observar que, nos dias de hoje, não se brinca mais de ser peixe ou de se pendurar nos troncos imersos nos igarapés. A própria carência de “vocabulário de rio” ou dos modos antigos de estar no mundo chega a ser um contrassenso em território rodeado por floresta. O mais assustador, no entanto, é assistir à morte do Xingu. Em Altamira, no oeste do Pará, essa é uma face da tragédia socioambiental anunciada por um projeto desenvolvimentista para a região amazônica desde a segunda metade do século 20.
O município de Altamira está entre os maiores do mundo em extensão territorial. Para se ter uma ideia, seu mapa é maior do que o de países como Portugal e Inglaterra. Com uma população estimada de 117.320 habitantes, Altamira é margeada pelo médio Xingu, que nasce no Mato Grosso e atravessa o estado do Pará, recebendo oito afluentes principais até desaguar no rio Amazonas. Quando corriam livres, essas águas eram chamadas de casa por povos indígenas de três troncos linguísticos distintos (Tupi, Macro-Jê e Karib), colonos e ribeirinhos, além de espécies únicas no planeta, como o peixe acari zebra. Mas tudo mudou em 2010, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) concedeu a licença prévia para a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
É preciso falar sobre o impacto desses grandes empreendimentos nos territórios e na vida das crianças
A geógrafa e vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes de Altamira, Daniela Silva, descreve a formação de uma geração de crianças e adolescentes “emparedadas” em periferias da cidade após a chegada de Belo Monte. Para que as barragens fossem construídas, 3.850 famílias foram apartadas de suas culturas ligadas à água doce e à floresta, sendo realocadas pela concessionária Norte Energia, responsável pela implementação da usina, em Reassentamentos Urbanos Coletivos, mais conhecidos como RUCs, a quilômetros de distância do rio.
Embora a construção do Complexo Hidrelétrico de Altamira tenha se iniciado em 2011, as primeiras pesquisas foram realizadas durante a ditadura militar, nos anos 1970. Desde o início, pesquisadores, movimentos sociais e diversos órgãos ambientais, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), questionam os impactos sociais e a viabilidade técnica, legal e ambiental do projeto. Isso porque, mesmo sendo um dos rios de maior variação da Amazônia (enchentes e vazantes), por três meses, o Xingu não tem água suficiente para rodar as turbinas da usina.
Durante três décadas, o líder indígena brasileiro da etnia caiapó, Cacique Raoni Metuktire, se transformou em uma das vozes que ganharam repercussão internacional na luta contra esse projeto que se tornaria Belo Monte. Apesar disso, o Congresso aprovou sua implementação em 2005. Para isso, a Norte Energia deveria apresentar um Plano Básico Ambiental, reunindo um conjunto de medidas de compensação do licenciamento ambiental, incluindo os RUCs, onde seriam realocadas as famílias que viviam em áreas consideradas de risco, ou os ditos “baixões”. A casa da mãe de Daniela, onde a geógrafa viveu a infância, foi uma das derrubadas nos “baixões”. Mas dona Ina, assim como muitos moradores da região, se recusa a passar pela dor de tocar no assunto.
Em 2022, além dos riscos de rompimento das barragens, as reparações às populações afetadas ainda precisam sair do papel. Entre as promessas de contrapartida está a construção de Hospital Materno Infantil para beneficiar o sudoesteste do Estado, que tem sido cobrada pelo Ministério Público do Pará.
“Antes de serem separadas pelos RUCs, as famílias tinham uma rede de apoio no bairro, quando as mães saíam para trabalhar, deixavam seus filhos aos cuidados dos vizinhos”, relata Daniela. Mas esses laços comunitários foram perdidos junto com as perspectivas de trabalho derivado da pesca e o consequente “etnocídio” das populações. Com a perda de direitos referentes à identidade tradicional, essas pessoas acabaram se tornando números nas estatísticas de pobreza e violência urbana, sem acesso a creches, hospitais e outros serviços essenciais. A ironia é que essa “gente do rio”, agora, pode passar dias sem acesso à água para beber.
Dados do Observatório de Homicídios do Instituto Igarapé mostram que, em 2000, a taxa de homicídios de Altamira era de 10,3 mortes por 100 mil habitantes. No entanto, a jornalista Eliane Brum, em seus relatos sobre os impactos socioambientais da usina, no livro recém-publicado “Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo” (Companhia das Letras), insiste em um dado alarmante: em 15 anos, a taxa de homicídio no município cresceu 1110% (124,6 mortes a cada 1000 habitantes). O período coincide com o aumento demográfico e das movimentações para a implementação de Belo Monte.
Em 2017, Altamira já estava em primeiro lugar no ranking das cidades acima de 100 mil habitantes mais violentas do Brasil, segundo o Atlas da Violência, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2019, o município noticiou o segundo maior massacre carcerário do Brasil, que ocorreu no Centro de Reparação Regional de Altamira.
Medo, insegurança pública e infraestrutura precária são, portanto, palavras frequentes no cotidiano de quem tinha esperança em ações de mitigação. As histórias escutadas pela reportagem são incapazes de produzir um retrato fiel da devastação causada por Belo Monte. “Essas famílias perderam seus modos de vida, estão assediadas pela criminalidade e buscando reconstruir tudo do zero. Os jovens estão completamente sem esperança”, alerta Daniela.
A psicóloga e assistente do coletivo Mães do Xingu, Jackelliny Cruz, se lembra da mudança súbita na paisagem urbana – Altamira saltou de 77 mil habitantes, em 2000, para quase 111 mil, em 2017. “Tínhamos medo de sair da escola e andar na rua, porque muitas pessoas foram atropeladas pelas máquinas e caminhões da usina”, diz.
Com a chegada de Belo Monte, um novo quadro de violação de direitos para crianças e adolescentes foi instaurado na região: pais que foram separados dos filhos durante a construção da usina, famílias realocadas no ciclo da pobreza, jovens fora das escolas em bairros periféricos, imersos em contextos violentos e produzindo as mais altas taxas de suicídio do país, mães que sobrevivem, mas com a saúde mental condenada.
A cidade está esvaziada de vida.
A linha do tempo não favoreceu a preservação da floresta e de seus povos na região de Altamira. A cidade, que foi fundada em meio ao primeiro ciclo da borracha, na década de 1880, foi afetada no século seguinte pelos processo de abertura da Rodovia Federal Transamazônica (BR-230). O período marcou a tentativa de povoamento da região por migrantes, como os avós de Maria Eldinei dos Santos, que se estabeleceram às margens do rio Iriri, principal afluente do Xingu.
“Minhas raízes são ribeirinhas, passei a infância colhendo arroz, melancia e pescando. Eu queria que as crianças tivessem a alimentação saudável que tive um dia, pois éramos pobres ricos”, confessa Maria. Hoje, sua tristeza é ver a contaminação do rio e a morte dos peixes aos montes. Mas a verdade é que as crianças de Altamira estão cada vez mais “desflorestadas”, muitas delas sequer conhecem um rio.
“Precisamos pensar em Altamira daqui a 10 anos. Se crianças e adolescentes não se sentirem pertencentes à floresta, será muito difícil resistir aos grandes empreendimentos”, defende Daniela Silva, idealizadora do projeto Aldeias, voltado à educação ambiental e ao desenvolvimento de crianças e adolescentes em áreas periféricas.
Junto a um time de voluntários, como a assistente social Maria Eldinei e um conselho com a participação da jornalista Eliane Brum, o projeto Aldeias é mais uma semente de resistência à transformação da Amazônia em muros e violência para os jovens de Altamira. Enquanto Belo Monte desvia o curso das águas e da história da maior floresta tropical do mundo, em nome de megabytes, ainda há quem sonhe em reconectar infância e natureza para que se possa fortalecer identidades e reavivar uma luta que, por décadas, questionou a palavra “progresso”.
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Recorde de desmatamento
Em janeiro de 2020, Altamira foi destacada como a cidade da Amazônia Legal com maior índice de desmatamento e impacto às terras indígenas, de acordo com levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O contexto é convergente ao do Pará, que promoveu 30% da destruição dos 196 km² de floresta, conforme os dados do Sistema de Alerta do Desmatamento (SAD), que monitora via satélite as áreas desmatadas na Amazônia legal.