Afinal, para que ‘serve’ a literatura infantil?

A literatura destinada às crianças é um território de infinitas possibilidades e não deveria ser restringida a uma função utilitária, defende Cristiane Tavares

Camilla Hoshino Publicado em 09.05.2018 Atualizado em 08.09.2022
Literatura infantil: Menina negra lê um livro deitada na grama. A capa do livro é vermelha e dele saem grafismos coloridos.
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Resumo

Abordar a relação das famílias e escolas com o livro a partir de uma perspectiva não didatizante, entendendo-o não como ferramenta para "ensinar", e sim como objeto de linguagem artística e um potente aliado para o desenvolvimento pleno da criança.

Literatura: lugar de prazer e de encantamento. São aquelas palavras que te permitem por um momento ser livre, ser outro, cruzar mares, pegar o primeiro voo rumo ao destino sonhado e naufragar. Quem já experimentou mergulhar fundo no universo da leitura sabe que o caminho não tem mesmo volta, mas infinitas possibilidades de chegada. Com a literatura infantil, não seria diferente. O diálogo proporcionado pelos livros – para todas as idades – oferece múltiplos significados de mundo.

“É estranhamento, provocação para os sentidos, ampliação das percepções condicionadas pela rotina, alargamento das margens que restringem o olhar, encontro de vozes plurais”

É o que reflete a professora e crítica literária Cristiane Tavares, ao abordar o “papel” da literatura destinada às crianças.  Ela é 

Cristiane Tavares é mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. É professora no curso de Pedagogia da Fundação Mokiti Okada, formadora na CE-CEDAC e coordenadora do curso de Pós-Graduação “Livros, crianças e jovens: teoria, mediação e crítica”, no Instituto Vera Cruz, em São Paulo. Escreve sobre literatura destinada às crianças para o Blog da Letrinhas e para a revista 451, além de atuar como assessora pedagógica e jurada em prêmios literários.

Para Cristiane, a leitura literária está inserida em sistemas educacionais, sociais e econômicos que precisam ser revistos urgentemente. Muitos livros destinados ao público infantil “surgem de uma demanda de mercado, com função prioritariamente comercial, o que lhes rouba qualquer possibilidade de conversar com o pequeno leitor como objeto cultural e artístico, provocador e crítico”, aponta.

“A sociedade precisa estar sempre organizada para reivindicar educação e cultura inclusivas, e isso contempla o universo dos livros para crianças”

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iStock/Arte Lunetas

“Sendo arte, a literatura infantil não deveria se restringir a uma utilidade específica”, defende Cristiane Tavares

Se é verdade que a literatura é uma arte capaz de despertar diversos sentidos e provocar os mais esperados e inesperados encontros, por que será que os livros destinados ao público infantil são muitas vezes reduzidos a uma utilidade específica, objeto de consumo ou à exploração do conteúdo escolar, despovoando o território da fantasia?   

“Os discursos genéricos em torno da infância acabam por apenas reforçar o viés que reduz a criança a consumidor em potencial ou que desconsidera sua realidade socioeconômica”

Para que a literatura assuma o papel de aliada no desenvolvimento pleno da criança, é preciso que a sociedade esteja preparada para reivindicar educação e cultura inclusivas, reagindo às mais diversas formas de estereotipação e censura. Este último ponto, de acordo com a professora, tem sido um dos impasses gerados pelo atual momento político do país.

Leia nossa conversa na íntegra

Lunetas – Muito se discute sobre o papel utilitário da literatura infantil, mas será que está correto atribuir a ela uma função específica?
Cristiane Tavares – Se tratarmos a literatura destinada às crianças apenas como literatura, sem a necessidade de adjetivá-la com o termo “infantil”, certamente ficará mais fácil lidar com ela sem precisar atribuir-lhe uma função utilitária. Digo isso, porque entendo a literatura, seja ela destinada a qualquer público, como uma expressão artística com marcas autorais. Sendo arte, não se deveria restringi-la a uma utilidade específica.

No entanto, o que se vê é uma quantidade gigantesca de livros destinados ao público infantil sob o rótulo de literatura, que na verdade não podem ser considerados uma criação artística literária e autoral, quando surgem de uma demanda de mercado, com função prioritariamente comercial, o que lhes rouba qualquer possibilidade de conversar com o pequeno leitor como objeto cultural e artístico, provocador e crítico.

Podemos trazer então alguma definição para o que é literatura destinada às crianças?
CT – O livro para crianças, a meu ver, pode ser entendido como objeto cultural de expressão artística autoral, que ganha em qualidade quando se pensa editorialmente em sua materialidade textual, visual e gráfica, capaz de dialogar com a sensibilidade e a inteligência das crianças.

As infinitas possibilidades moram nas muitas camadas de leitura que um bom livro traz: abertura para múltiplos significados, estranhamento, provocação para os sentidos, ampliação das percepções condicionadas pela rotina, alargamento das margens que restringem o olhar, encontro de vozes plurais.

Sendo assim, como pensar a literatura destinada ao público infantil como um aliado potente para o desenvolvimento pleno da criança, para além da perspectiva ”didatizante”?
CT –
A leitura literária (e não tudo o que se convencionou chamar de ‘literatura infantil’) pode ser, sim, uma potente aliada no desenvolvimento pleno da criança, mas é preciso redimensionar esse “poder”.

Penso que o pleno desenvolvimento das crianças brasileiras virá, sobretudo, por meio da diminuição das desigualdades sociais em nosso país. Desse ponto de vista, o poder da chamada ‘literatura infantil’ não é tão grande assim. É claro que a leitura literária pode ter um papel importante na formação de crianças e jovens mais críticos e isso depende de inúmeros fatores: além de uma abordagem menos “didatizante”, ou seja, que não reduza a leitura literária à exploração de conteúdos escolares sem sentido, é preciso que os professores apostem na inteligência e na sensibilidade das crianças ao escolherem os livros que serão lidos e ao mediarem situações de leitura.

“A experiência da alteridade é um dos aspectos mais potentes que a leitura literária pode promover. Como diz Teresa Colomer, ‘temos a possibilidade de ser outro sem deixar de sermos nós mesmos'”

Como pensar, como mencionou, em uma leitura com vozes mais plurais para essa formação?
CT – É preciso que a sociedade se organize para responder criticamente às publicações estereotipadas, por exemplo, que ainda prevalecem quando pensamos nas representatividades negra ou indígena nos livros destinados às crianças, ou mesmo no predomínio de um discurso moralizante, quando pensamos na censura que tem sido praticada por determinados grupos sociais mais conservadores, que não convivem bem com a liberdade de expressão.

Nesse contexto político em que vivemos, a alteridade se faz ainda mais necessária e pode ser traduzida como respeito verdadeiro às diferenças de classe, raça, gênero, orientação sexual. Do mesmo modo, se faz necessária a busca pela igualdade social, oferecendo a todas as crianças as mesmas oportunidades dignas de educação e cultura. Isso é o que, afinal, deveria nos distinguir civilizadamente de uma sociedade bárbara como a que vivemos, para aí, sim, podermos falar em “desenvolvimento pleno da criança”.

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iStock/Arte Lunetas

A literatura infantil é uma janela para o entendimento do mundo

“O pleno desenvolvimento das crianças brasileiras virá, sobretudo, por meio da diminuição das desigualdades sociais em nosso país”

O que vemos, no entanto, é o predomínio do desrespeito e do autoritarismo cerceando liberdades de expressão em todos os campos, inclusive na produção literária voltada às crianças. O livro destinado às crianças, assim como a leitura literária, estão inseridos em sistemas educacionais, sociais e econômicos que precisam ser revistos urgentemente, para que esse desenvolvimento pleno ao qual a pergunta se refere seja minimamente possível de almejar.

Do surgimento da literatura infantil até hoje, muita coisa mudou. Como você acha que a sociedade tem enxergado o livro nas escolas, em casa e nos momentos de lazer?
CT – O acesso das crianças aos livros aumentou consideravelmente nas últimas décadas, principalmente com a implantação de políticas públicas como o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL). Mais uma vez, o momento político em que vivemos me impede de responder a essa pergunta ingenuamente, afinal, cortes absurdos têm sido feitos pelo atual governo: ministérios e secretarias importantes foram extintos, comprometendo, por exemplo, o necessário cuidado com as representatividades negra e indígena na literatura, assim como o tratamento da questão de gênero.

“Retrocessos imensos têm sido vistos por todos aqueles que trabalham com o livro, a leitura e a infância”

Você pode dar um exemplo de como o cenário político atinge a relação da criança com a leitura?
CT – Em São Paulo, por exemplo, o tratamento que o atual prefeito tem dado a tudo o que envolve livro, leitura e educação: o Plano Municipal da Leitura, que estava a todo vapor na gestão passada, foi interrompido. Um outro exemplo, em nível nacional, é o atual edital do PNLL, que inclui a seleção de livros literários voltando a classificá-los por faixa etária e a vinculá-los aos antigos manuais de leitura. 

A sociedade precisa estar sempre organizada para reivindicar educação e cultura inclusivas, e isso contempla o universo dos livros para crianças. Reagir a toda forma de censura é fundamental nesse momento, em defesa da formação de leitores críticos. Do mesmo modo, é fundamental manter e ampliar os espaços de interlocução entre todos os profissionais envolvidos com as práticas sociais de leitura: professores, pais, crianças e jovens, mediadores, editores, autores, ilustradores.

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