A perda gestacional ainda é tratada como tabu que se reflete na precariedade do atendimento à mulher e na falta de acolhimento às famílias que vivem o luto
‘Você está celebrando uma nova vida e o que menos espera é que a morte se apresente naquele momento’. A perda gestacional, apesar de comum, é considerada um tabu refletido na falta de atendimento humanizado à mulher e compreensão do luto perinatal vivido pelas famílias.
Tudo está caminhando conforme o previsto. Após a confirmação da gravidez, os planos começam a ser traçados. Qual será o nome do bebê? Como será o rostinho dele? E o primeiro dia na escola? A notícia de uma maternidade projeta um futuro cheio de expectativas, compartilhado com familiares e amigos. Mas há um acontecimento que faz tudo isso mudar de repente e leva os sentimentos de mães e pais de um extremo a outro: o aborto espontâneo.
A perda gestacional é mais comum do que se imagina. Apesar de ser um tema pouco falado, seja por tabu ou pelos traumas causados, é uma das principais intercorrências obstétricas. Estima-se que a cada 100 gestações, 15% das mulheres passarão por isso. O critério foi estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1975, e é classificado como a perda do feto por qualquer causa antes das 20 semanas de gestação ou se ele pesar menos de 500 gramas. Pode ser precoce, quando ocorre até a 12ª semana de gestação, ou tardia, se ocorre depois disso e até a 20ª semana.
O abortamento precoce é o mais comum. Em 1,5 de cada 10 gestações, há uma evolução natural para o aborto antes das 20 semanas, sendo que em 80% desses casos a perda ocorre até a 12ª semana. O motivo mais recorrente são as anomalias cromossômicas, responsáveis por 50% das perdas gestacionais consideradas precoces. Outras causas são alterações uterinas, fatores endócrinos (mudanças na tireóide e diabetes descompensado), questões imunológicas e infecções.
Contudo, cerca de 30% das perdas gestacionais seguem sem motivação conhecida. “Quando há um primeiro abortamento, a recomendação é não investigá-lo, exceto em situações especiais, pois as chances de acontecer novamente não são maiores em quem já vivenciou a experiência uma vez”, explica a ginecologista e obstetra Rosiane Mattar, professora titular do Departamento de Obstetrícia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e presidente da Comissão de Gestação de Alto Risco da Febrasgo.
Uma mulher que sofreu um único aborto espontâneo tem as mesmas chances de engravidar que qualquer outra mulher em idade gestacional.
A incidência do abortamento muda após a segunda ocorrência ou quando considerados alguns fatores de risco. Um deles é a idade da mãe: em mulheres de 40 anos é de 40%, enquanto naquelas de 20 anos é de 7 a 8%. “Quando há mais de uma perda, a recomendação é investigar junto ao serviço de saúde e buscar opções que ajudem o casal”, acrescenta a médica.
A jornalista e terapeuta Daniela Muller, 38, decidiu engravidar no início de 2020. Buscava uma experiência de maternidade mais madura e consciente. Em maio, recebeu a confirmação da primeira gestação. “Foi um dos momentos mais felizes da minha vida, a vontade era contar para todo mundo.” Mas, após planejar durante anos a gravidez e de conseguir do jeito sonhado, Daniela teve uma perda gestacional na sexta semana. “É muito difícil, pois você vai de um extremo a outro em pouco tempo”, ela conta.
“Você está celebrando uma nova vida e o que menos espera é que a morte se apresente naquele momento”
Quando ocorre a perda gestacional, há dois movimentos paralelos: o impacto na saúde física e psicológica da mulher.
Do ponto de vista clínico, a recomendação de como proceder depende das circunstâncias do abortamento. “Quando a gestação está no início, pode ser feita uma conduta expectante ou ativa de esvaziamento uterino, por aspiração manual ou curetagem, dependendo da escolha do casal. Mas também existe a possibilidade de aguardar até 15 dias, pois a natureza pode acabar eliminando espontaneamente”, explica Rosiane Mattar. No caso de um aborto tardio, pode haver a indução da contração uterina, para que o corpo “expulse” o feto e todo o material intrauterino.
Se a descrição disso já é chocante, passar pela experiência pode ser ainda mais desagradável quando não há assistência adequada na maternidade, como conta Daniela. “Já estávamos no esquema de segurança, por conta da pandemia, e fui mal atendida no hospital. Meu marido não pode entrar comigo na sala. Fiquei sozinha, estava nervosa, sentindo muita dor. O comportamento dos profissionais só mudou quando desabei a chorar.”
Grávida de um filho planejado, a técnica de enfermagem Juliana Silva, 31, começou a ter sangramentos com dois meses de gestação e descobriu o abortamento em um ultrassom. “Optamos por ficar internados, pois seria muito doloroso vir para casa e esperar meu bebê sair”, conta.
“Fui colocada em uma maternidade ao lado de uma gestante em trabalho de parto. Passei a manhã e a tarde ouvindo o batimento do bebê da minha vizinha, mas nunca pude ouvir o do meu”
No Brasil, há uma norma técnica do Ministério da Saúde com orientações para uma atenção humanizada ao abortamento, que reforça como deve ser o acolhimento às mulheres e a conduta das equipes de saúde. A prática, porém, ainda destoa do recomendado em alguns serviços.
“Algo que orientamos, por exemplo, é que não existe a necessidade de ficar questionando ou julgando o contexto do abortamento. Sabemos que isso pode influenciar como será a assistência em alguns lugares”, afirma a médica Rosiane Mattar. “A pergunta tem um viés muito grande na resposta das mulheres, pois os serviços de saúde, em geral, tratam tanto um aborto espontâneo quanto um provocado de forma estigmatizada, com violência institucional”, explica a epidemiologista pesquisadora associada do Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde (Musa) da Universidade Federal da Bahia Emanuelle Góes.
Racismo institucional
Em sua pesquisa de doutorado, Emanuelle identificou que mulheres pretas e pardas têm mais dificuldade em procurar os serviços de saúde, pelo medo de serem maltratadas. O estudo mostrou que mulheres negras, sobretudo as pretas, buscam o serviço com 12 semanas ou mais de gestação. Esse período não é considerado tardio, mas é maior em comparação a mulheres brancas. “As pretas têm maior dificuldade institucional na hora em que estão dentro dos serviços, esperam mais para serem atendidas e aguardam mais tempo por um leito”, explica Emanuelle. “O racismo institucional gera violência e agravamento das condições de saúde dessas mulheres negras.”
Às questões práticas e fisiológicas da perda gestacional, há algo, porém, que fica submerso e costuma ser desprezado, o luto perinatal. O abortamento é uma morte e vem permeado de dor. É uma marca que fica. Mas é comum que as famílias escutem frases como “logo você tem outro, aí esquece” ou “você é jovem, tem tempo para engravidar”, o que amplia o tabu em torno da perda gestacional e pode comprometer ainda mais a saúde mental de mães e pais.
O luto perinatal faz parte daquelas perdas silenciadas. “É um tipo não reconhecido de luto, que não tem validação social. A sociedade define quem pode se enlutar e por quanto tempo”, explica a psicóloga e pesquisadora do tema Érica Quintans.
“As pessoas pensam que não houve tempo para se apegar, mas para a mãe e o pai aquela gestação era feita de planos e sonhos. Você não perde só o bebê, mas todas essas fantasias”
A notícia da morte do bebê gera um choque emocional. “O luto se manifesta em um silêncio muito grande. É um ‘não evento’, pois o bebê não nasceu. Mas, ao mesmo tempo, é algo que aconteceu na vida do casal e precisa ser reconhecido”, explica a psicóloga mestre em Ciência da Saúde, representante da ONG inglesa Sands, Márcia Rodrigues. Érica acrescenta que a forma como esse luto será expressado é individual e subjetivo, independe do estágio da maternidade e acomete pais e mães.
“No caso dos homens, é um luto ainda mais silenciado, pois tem aquela questão de não poderem se emocionar, terem de estar bem para cuidar da mulher. É uma dupla negação”
Falar sobre a perda é importante para incorporá-la à nova rotina e diminuir as chances de um luto complicado, quando há a necessidade de acompanhamento profissional. Mas nem sempre é fácil encontrar ouvidos. O abortamento de Juliana aconteceu há pouco mais de três meses. “A sensação é de falta da minha barriga, um vazio dentro de mim. É muito difícil expor essa situação. Às vezes, me pego sorrindo, mas temo que as pessoas pensem que não estou sofrendo por causa disso”, conta.
A falta de uma certidão de óbito, de um ritual de despedida ou mesmo de ver o bebê, quando é uma perda tardia, podem amplificar a vivência do luto. Geralmente, as famílias buscam outras pessoas que passaram pela mesma vivência. É nesse momento que elas veem como a perda gestacional é um acontecimento comum. “Eu percebi que não fui a única, há muitas outras mulheres que passaram por isso”, diz Juliana. Algumas se uniram para dar amparo às famílias no grupo “Do luto à luta“.
Para trazer os sentimentos à tona, Juliana escreveu uma carta de despedida ao filho. “Escrevendo, sozinha, eu podia chorar e lamentar. Era somente o meu desabafo e isso gerou um pouco de conforto.” Daniela também descreve a dor da perda. “É um momento em que todas as feridas mais antigas se abrem. Precisei entender que eu era mãe, sim!”, conta ela, que escreveu o livro “Mãe de Anjo” sobre sua experiência do aborto espontâneo e do luto.
Existem dois comportamentos comuns quando a mulher passa por uma perda gestacional: o de querer engravidar novamente e rápido, e o de ficar com medo de novas tentativas. A fisioterapeuta Caroline Souza, 33, viveu os dois. Há quatro anos, ela tentou a primeira gravidez, mas teve uma perda gestacional antes das 12 semanas. “Fiz uma ultrassom e descobri que meu filho estava sem batimentos. Não aceitei, se eu pudesse, estaria grávida no outro dia.”
Depois de investigar, foi diagnosticada com trombofilia – uma condição que facilita a formação de trombos e necessita de um tratamento diário para levar a gravidez adiante. Cinco meses depois, Caroline voltou a tentar. Descobriu a nova gravidez porque teve uma embolia pulmonar. O novo sentimento foi de desespero e alguns disseram para ela desistir. “Chorava muito quando colocava a cabeça no travesseiro. Não conseguia aceitar o fato de não manter uma gestação. Tentava disfarçar meu sofrimento calada”, lembra.
Depois de um intervalo de dois anos, desta vez acompanhada por um hematologista e um obstetra especializado em gestação de alto risco, Caroline tentou novamente. Com um mês, o coração do novo filho parou. O chão desabou, foi preciso recorrer como nunca antes à fé. Em janeiro de 2020, uma nova tentativa. “Cada ultrassom era um medo. Mas esta foi evoluindo, a barriga crescendo e deu tudo certo. Minha filha é um milagre”, conta ela, que teve Lara há quatro meses. Desde então, Caroline fez um pacto consigo mesma, contar a história dela para dar esperança a outras mulheres.
“Quero mostrar que não é preciso desistir se a maternidade for um sonho”
Quando há perda gestacional, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê um repouso remunerado de duas semanas e garantia de retorno ao cargo ocupado antes de ser afastada. Em 2019, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) chegou a dar a estabilidade laboral, prevista para o caso de nascidos vivos, à mulher que passou por uma perda gestacional no segundo mês de gestação.
A Norma Técnica – Atenção Humanizada ao Abortamento é um guia para apoiar profissionais e serviços de saúde e introduzir novas abordagens no acolhimento, a fim de estabelecer e consolidar padrões culturais de atenção com base na necessidade das mulheres, assegurando a saúde e a vida. Elaborada pelo Ministério da Saúde em 2005, o documento é o reconhecimento do governo brasileiro ao fato de que o aborto realizado em condições inseguras está entre as principais causas de morte materna; que as mulheres em processo de abortamento, espontâneo ou induzido, devem ser acolhidas pelos serviços de saúde e atendidas com dignidade; e que a atenção tardia ao abortamento inseguro e às suas complicações pode ameaçar a vida, a saúde física e mental das mulheres.