A partir da conversa com o filho de 10 anos, a psicóloga Juliana Prates reflete sobre as injustiças expostas pela pandemia
‘A quarentena é injusta’, diz Miguel, 10 anos. Ele explica que o isolamento tira todas as coisas boas e deixa as ruins. A partir dessa conversa com o filho, Juliana Prates fala sobre as desigualdades e as injustiças escancaradas pela pandemia de coronavírus.
Ao pensar o que escrever para esta coluna, tive várias ideias: poderia falar sobre os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) comemorados no dia 13 de julho, sobre as mais de 90 mil mortes por Covid-19, sobre a reabertura do comércio apesar de não termos alcançado uma diminuição diária do número de óbitos ou sobre os debates acerca de um possível retorno às aulas presenciais nas escolas do país. No entanto, confesso que todos esses temas não me despertaram muita vontade de escrever, uns porque estão sendo bastante debatidos e outros porque me entristecem profundamente. De onde então veio a ideia de escrever sobre como a quarentena é injusta?
Veio da ajuda de um dos maiores especialistas sobre a infância e a vida das crianças que eu conheço: meu filho de 10 anos, Miguel. Preciso confessar que faço isso muitas vezes e grande parte dos meus exemplos em aulas e palestras são fruto de um plágio familiar – ora copio Miguel, ora relembro dos feitos de Luísa, uma adolescente de 13 anos. Engraçado que, na maioria das vezes, aceitamos que as crianças reproduzem o discurso dos adultos, mas não confessamos o quanto aprendemos com elas.
Em um dos seus dias inspirados, Miguel, antes de dormir e com lágrimas nos olhos, me disse: “A quarentena é injusta”
Perguntei para ele o que significava isso de a quarentena ser injusta (afinal, eu precisava mais do que de um título para esta coluna) e ele começou a discorrer sobre o assunto.
Segundo ele (e eu tive que concordar), a quarentena é injusta pois tira as melhores coisas e deixa as ruins. Por exemplo, mantém as tarefas da escola e a explicação dos professores, mas tira a interação com os amigos, as brincadeiras no parque, as aulas de campo e as descobertas coletivas. Deixa o computador e o celular apenas para jogar e assistir a vídeos divertidos e entram os equipamentos para construir infográficos, assistir aulas e fazer atividades. Tira o abraço, o encontro com os avós, o banho de mar…
Assim ele seguiu, listando todas as coisas boas que deixaram de acontecer e listando todas as coisas ruins que continuaram. Na sua lista de coisas ruins havia tomar banho, escovar os dentes, lavar as mãos, varrer a casa, lavar pratos.
Ouvi tudo e comecei a fazer o jogo do contente, de lembrar todas as coisas boas que ficaram e que podemos agradecer, como a nossa casa segura, alimento na mesa todos os dias, a possibilidade de passarmos mais tempo juntos, a redescoberta de velhos brinquedos, o plano de um novo membro da família tão desejado (um cachorro), os momentos de risada e diversão, a diminuição das horas de deslocamento e, o mais importante de tudo, o fato de termos ajudado a proteger a vida de tantas pessoas e as nossas próprias cumprindo o necessário distanciamento social.
Ele aceitou e dormiu, mas eu segui acordada, pois a minha lista de agradecimentos apenas reforçava a afirmação que ele tinha feito antes: essa pandemia é injusta! Injusta porque evidencia as desigualdades sociais, políticas e econômicas que existem. Escancarou que a falta de moradia é um problema real que atinge milhares de pessoas no mundo e que o conceito de casa é muito mais complexo do que as medidas sanitárias deixam transparecer. Que o simples ato de lavar as mãos com água e sabão com maior frequência é um dos tantos exemplos de privilégio e da desigualdade social que marca a nossa realidade, visto que tantas pessoas vivem sem ter acesso à água encanada, por exemplo.
A pandemia não inventou a desigualdade ou a injustiça, mas acentuou as suas expressões perversas, tornando impossível não percebê-las.
Todos, à princípio, podem contrair o coronavírus e apresentar os sintomas da Covid-19, mas o número de mortes expõe um dado inegável e triste de quais são os corpos mais vulneráveis (negros e pobres). Muitos falam de uma oportunidade da construção de um mundo melhor após essa pandemia, mas isso só será possível se formos capazes de defender as políticas públicas existentes (Sistema Único de Saúde, Sistema Único de Assistência Social, universidade pública) e, ao mesmo tempo, investir em novas políticas que efetivamente combatam e reduzam as desigualdades sociais.
Além disso, aqueles que têm tanto a agradecer (como eu disse ao meu filho), precisam estar dispostos a reconhecer o seu lugar de privilégio e a abrir mão dos mesmos. É verdade que o consumo poderá diminuir, a distribuição do trabalho doméstico poderá ser mais igualitária, a universalização dos direitos básicos pode ser uma realidade, mas isso não acontecerá em decorrência da pandemia, mas com a implicação de todos no reconhecimento das nossas desigualdades de gênero, raça e classe que estruturam as nossas relações.
Com essa certeza, fui dormir, concordando mais uma vez com meu filho e tendo a certeza de que as crianças têm muito a nos ensinar: essa pandemia é muito injusta!
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