Como ‘A fera do mar’ questiona a história contada pelos livros

Conteúdos audiovisuais infantis podem contribuir para uma visão crítica sobre a história e praticar uma formação decolonial junto das novas gerações

Camila Santana Publicado em 14.07.2022
Cena do filme A fera do mar, em que as personagens Maisie, uma menina negra, e Jacob, um homem branco, estão em um barco junto de um animal azul. Atrás deles, há o rosto da Red, uma fera do mar, que é vermelha e tem os olhos amarelos
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Resumo

Conversamos com a animadora Pâmela Peregrino para refletir sobre o filme “A fera do mar”, da Netflix, e os desafios de produções audiovisuais que auxiliem numa formação antirracista e decolonial de meninos e meninas.

Um mundo repleto de monstros e caçadores convida o espectador a embarcar em uma aventura marítima. A bordo do navio “Inevitável”, o destino de “A fera do mar” é entender uma guerra centenária entre os humanos e essas criaturas. A partir do exercício de tentar recontar a versão oficial da história, o filme de Chris Williams, que estreou na Netflix na última sexta-feira (8), traz os questionamentos da pequena Maisie Brumble, uma protagonista negra, sobre o papel reservado a heróis e vilões nos livros. É com coragem e empatia que ela nos conduz a olhar para as feras de um novo jeito e nos faz repensar sobre as lendas que motivaram aquela guerra. 

“A nossa história é uma mentira. Por gerações, os reis nos fizeram odiar as feras, e fizeram os caçadores destruírem elas.  E, com cada mentira, esse império cresceu” – Maisie

O curso da narrativa se transforma quando Maisie resolve entrar no navio, de forma clandestina, e integrar a tripulação do capitão Corvo e de Jacob Holland. Sua maior inspiração para encarar essa jornada são seus pais, que morreram em batalha contra as feras. Enquanto acompanhamos uma jornada épica de marinheiros, vemos florescer a amizade de Maisie e Jacob, que foi resgatado do mar pela tripulação quando era criança.

Coragem para reformular a história que os livros não contam

A proposta de descolonizar o olhar, contribuindo para uma formação antirracista e decolonial de meninos e meninas, é um movimento importante para apresentar às crianças uma diversidade de possibilidades, saberes e vivências de outros povos, que não estejam restritas a conhecimentos e narrativas eurocêntricas.

Obras audiovisuais com protagonistas negros são uma forma de permitir que as crianças negras se reconheçam nesses personagens e construam referências poderosas para uma releitura da história. Para Pâmela Peregrino, animadora e professora de Artes da Universidade Federal do Sul da Bahia, com uma orientação pedagógica adequada, o discurso final de Maisie pode ser usado por educadores para propor um debate crítico sobre as versões oficiais da história.

“Você pode ser o herói e estar errado!”

Pâmela, que realiza curtas de animação em processos educativos, de imersão e vivência em comunidades tradicionais negras e indígenas, considera a importância do questionamento ser feito por uma criança negra. Mesmo sem marcações explícitas no filme, é possível traçar paralelos entre a guerra ficcional, de caçadores e feras, e episódios da nossa história, como o período da colonização e da escravização

Contudo, ela aponta que o discurso de Maisie tem a limitação de não ser palpável. “É muito difícil pensar em uma criança negra falando assim na frente dos reis, sem que isso resulte em consequências negativas para ela”, pondera. “Embora seja uma cena bonita, ela não possui amparo na realidade. Dessa forma, o aspecto político do discurso fica prejudicado, podendo provocar uma paralisia no espectador, ao invés de convocar à ação.”

Para contribuir com o debate sobre conteúdos focados em inspirar transformações sociais, a realizadora audiovisual traz a referência do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Segundo o dramaturgo, quando uma obra de arte oferece uma solução pouco sólida para um grande conflito, ela estimula uma visão mágica sobre a realidade e afasta o espectador de formar uma visão crítica, impedindo-o de pensar em soluções concretas para transformar o contexto em que vive.

Por conteúdos mais diversos

Como resposta aos avanços das pautas do movimento negro, o setor do entretenimento tem buscado contemplar uma maior diversidade em suas obras. “A fera do mar” faz parte da estratégia de consolidar a Netflix como produtora competitiva de filmes de animação voltados para o público infantil, seguindo uma estética parecida com produções de grandes estúdios, como Disney e Dreamworks, inclusive apostando em profissionais renomados e com experiência em grandes produções. 

Contudo, apesar da proposta de “A fera do mar” trazer diversidade na representação dos personagens principais, e até de temáticas, no novo filme de Chris Williams, o mesmo diretor de “Moana”, não há diversidade étnico-racial entre as lideranças da equipe técnica, um ponto-chave para construir narrativas verdadeiramente antirracistas e decoloniais, comenta Pâmela.

Embora haja atrizes negras nas dublagens da protagonista de diferentes países, Pâmela reforça que “é essencial ter pessoas negras nos papéis decisivos das equipes de produção, para evitar distorções no enredo e nas representações, e também para que as histórias sejam convincentes, de modo que a gente possa se identificar com os personagens, e que os espectadores entendam nossos conflitos e nossa história.”

“Soul”, a primeira animação da Pixar com um protagonista negro

Pâmela nos lembra que o dramaturgo Kemp Powers, que colaborou no roteiro e direção do filme “Soul”, trouxe diversas características da personalidade e do modo de vida dos negros nos Estados Unidos, principamente no âmbito do jazz. Segundo ela, a preocupação com uma equipe diversa refletiu positivamente na forma e no conteúdo do filme, influenciando na maneira como os personagens foram criados, em aspectos que vão desde suas personalidades, aos diferentes tons de pele e tipos de cabelo, para que a experiência negra não se resumisse a uma única.

Para exemplificar a tendência em construir personagens como os roteiristas são e como entendem o mundo, a animadora comenta que “as personagens negras do filme, Maisie e Sarah, possuem um aspecto negro, mas suas personalidades e ações se assemelham a de personagens brancos em suas respectivas faixas etárias”. Pâmela pontua que a ausência de pessoas negras na equipe técnica reflete nas construções da narrativa e no desenvolvimento das personagens, o que pode provocar um incômodo na audiência, que não conseguiria se identificar completamente com as personagens. 

Apesar disso, nas redes sociais, espectadores têm manifestado entusiasmo com a presença de uma garota negra como protagonista de uma narrativa clássica de aventura, além de outros personagens com diferentes tons de pele. Os internautas celebram também o discurso de Maisie contra a monarquia. 

Além de comentar a importância de ”compartilhar os recursos financeiros e também o prestígio com as pessoas negras criadoras de conteúdo”, Pâmela reforça que as narrativas só começarão a se modificar quando os espaços de criação forem ocupados por pessoas de diferentes vivências. No caso do filme “A fera do mar”, a experiência do produtor Peter Duguid de ter morado em um navio por dois anos quando era criança junto dos pais, por exemplo, agregou ao processo de pesquisa e facilitou o desafio de animar cenas de batalhas marítimas, pois a água aumenta a complexidade da animação.

Apesar do filme “A fera do mar” trazer uma narrativa sobre empatia e justiça, ainda há um longo caminho a percorrer para que os gigantes do mercado audiovisual tragam conteúdos que estimulem outros olhares e auxiliem na formação decolonial das crianças. Isso envolve abrir espaço para produções capazes de ampliar as referências estéticas, bem como a identificação com protagonistas e narrativas diversas, mas que também contemplem novos realizadores e profissionais de diferentes origens, gêneros e vivências, inclusive promovendo obras de outros países fora do eixo dominado pelo mercado estadunidense.

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