“Olhem para as nossas crianças e priorizem elas. Hoje eu sinto uma dor indescritível”. O desabafo ao Lunetas é de Jean OCampo, um pai que há quatro meses perdeu o que tinha de mais valioso: a filha Sophia, de apenas dois anos. O crime que interrompeu a vida da menina foi cometido dentro da própria casa. Segundo as investigações, ela era constantemente espancada pela mãe e pelo padrasto, e também apresentava sinais de abuso sexual.
O caso se arrastou por um ano entre denúncias e pedidos de ajuda sempre que o pai notava machucados e hematomas na filha. Ele fez várias denúncias ao Conselho Tutelar, dois boletins de ocorrência por maus-tratos e um pedido de guarda da menina, que não teve resposta. Nesse tempo, ela chegou a dar entrada 30 vezes no mesmo posto de saúde de Campo Grande (MS). Ainda assim, nunca foi afastada do lugar em que era agredida, já que a mãe tinha a guarda unilateral. “É nítida a falta de preparo, de capacitação e de comunicação entre os órgãos responsáveis por defender nossas crianças. Minha filha foi vítima desse descaso e negligência”, pontua.
Dentre a sucessão de erros e omissões até acontecer o pior, OCampo destaca mais um fator: o preconceito por ele ter um relacionamento com outro homem. “Fizeram juízo de valor e tiraram as próprias conclusões sem investigar o que acontecia com minha filha. A homofobia velada foi o fator principal do argumento para não tirar a guarda da mãe e dar para dois homens”.
Infelizmente, Sophia foi vítima de uma violência que acomete três crianças a cada hora no país. “Sinto um vazio enorme e revolta porque lutei e fiz de tudo para estar com ela e tiraram isso de mim”, lamenta o pai. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, só nos primeiros meses de 2023, mais de 9 mil casos foram registrados, sendo que o Disque 100 recebeu 17,5 mil denúncias de violações como exploração e abuso sexual infantil. A estimativa é que, todos os anos, 500 mil crianças e adolescentes são vítimas desses tipos de crimes e 51% têm entre um e cinco anos, como revela a campanha Maio Laranja, de combate à exploração e abuso sexual infantil no Brasil.
Mesmo com dados alarmantes, o Brasil alcançou o primeiro lugar entre os países da América Latina e do Caribe que melhor respondem aos crimes de violência sexual contra crianças. Numa escala global, que considera os 60 países onde vivem 85% da população mundial das crianças, o Brasil está na 11ª posição. O ranking é feito pelo índice “Out of the Shadows” (Fora das Sombras), produzido pelo jornal britânico “The Economist”. O estudo levou em consideração as leis de proteção e as políticas públicas de prevenção e combate à violência sexual contra crianças.
Em função da presença de canais diretos para denúncia e de uma política especializada, como a unidade policial voltada à exploração e ao abuso sexual on-line, a avaliação do Brasil teve aprovação expressiva na categoria de engajamento da sociedade e capacidade do sistema judicial. Por outro lado, o país reprovou em quesitos relacionados à reabilitação dos agressores e a ações de prevenção.
“Somos bons formuladores de leis, mas não na implantação”
Apesar do reconhecimento das leis brasileiras como um modelo eficaz para o combate à violência sexual de crianças e adolescentes, a teoria ainda está longe de alcançar êxito na prática. De acordo com Itamar Batista Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil, organização que atua no enfrentamento ao abuso e à exploração sexual infantil, o desafio é transformar as leis em uma cultura cotidiana de proteção de crianças e adolescentes. “Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a violência sexual é o único indicador que não diminuiu. Sequer deixamos no mesmo patamar de um ano para o outro”, comenta. Para ele, os principais entraves podem ser resumidos em três pontos: a escassez de políticas de prevenção, a falta de integração dos serviços de proteção e o baixo índice de responsabilização dos culpados, que acaba perpetuando a impunidade.
“As nossas leis podem até ser referências para outros continentes, mas isso mostra que somos bons formuladores, não na implantação”, ressalta.
Para Gonçalves, são fundamentais políticas de prevenção para combater novos casos antes que a violência chegue às crianças. “A temática da autoproteção deve ser inserida numa perspectiva de proteção integral, que opere sobre as desigualdades socioeconômicas, as identidades étnico-raciais e de gênero, com a efetivação de uma educação sobre saúde sexual”, argumenta. Segundo o advogado, é no contexto educacional que a maioria das denúncias chega. “Também não podemos isentar a família desse papel educativo, embora os índices apontem que a maior parte das violências ocorre dentro das casas”.
“É preciso ter um olhar sensível para a criança e abrir um diálogo sem julgamento”
As crianças dão sinais quando sofrem algum tipo de violência sexual. A introspecção, o medo, dores no corpo e até febres sem motivos aparentes são alguns deles, explica Rosane Brasil, coordenadora do Serviço de Assistência Social do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR), referência em atendimento pediátrico de vítimas de violência na região. “Se uma criança que era calma e interagia normalmente com os amigos de repente se torna assustada, não quer mais brincar ou ir para a escola e só fica no canto, ou então tem pesadelos, faz xixi nas calças, é preciso saber o que está acontecendo. Em alguns casos, essas crianças sofrem ameaças do abusador”.
Quando o abuso acontece repetidas vezes pelo mesmo agressor, a criança tende a naturalizar a violência, sem manifestar sentimentos de medo, vergonha ou tristeza na fala. “É o que a psicologia chama de ‘desafeto’”, explica a assistente social.
O adulto precisa ter um olhar sensível para a criança e abrir um diálogo sem julgamento e sem pressioná-la. “Já vimos pais perguntarem ‘por que você deixou?’ ou ‘por que não contou antes?’, como se a criança tivesse algum poder em relação ao abusador. Mas ela não tem a mínima condição psíquica de ir contra o que está acontecendo”, lembra Brasil.
No ano passado, dos 375 casos de violência sexual atendidos no hospital, 69% eram de pacientes na primeira infância, sendo 79% meninas. O agressor, geralmente, era uma figura masculina conhecida da família, como o próprio pai e homens que frequentavam a casa livremente ou por intermédio de um terceiro, como amigos e parentes de quem costuma cuidar da criança.
Andrea Taubman, membro da Coalizão Brasileira Pelo Fim da Violência Contra Crianças e Adolescente e autora do livro “Não me toca, seu boboca!”, defende explorar materiais lúdicos para abrir o debate em sociedade, reforçando a informação como caminho de proteção. “A menina-coelha Ritoca faz questão de contar sua história, para que todas as crianças possam conhecer e reconhecer toques estranhos de adultos em seus corpos, e terem mais recursos para se defenderem e relatarem o acontecido”. O livro, que ganhou o Prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, nasceu da observação de Taubman de “olhares sem brilho e sem esperança” de crianças vítimas de violência sexual, quando foi voluntária em uma Casa de Passagem, em Teresópolis (RJ). “Aquilo me feria a alma e pensava como poderia chegar antes da violência”, recorda.
“A gente libera a criança e ela volta a ser agredida. É uma frustração”
Após o atendimento médico, o caso é encaminhado para o Ministério Público do Estado, para que a denúncia seja registrada. “Trabalho há 17 anos com esses pacientes e sempre me comovo muito. Os piores são os casos reincidentes, quando a gente libera a criança e ela volta a ser agredida, sendo comum chegar a óbito. É uma frustração e tristeza enorme”, desabafa a assistente social. Entre esses casos, ela lembra de uma menina de dois anos que era agredida pelo próprio pai e teve morte encefálica constatada 20 dias após a primeira alta médica. Mesmo com a situação denunciada à justiça, ela voltou a conviver com o seu agressor. “Só depois da morte da criança esse pai foi preso em flagrante. Mesmo assim, é difícil conseguir que ele seja julgado e condenado”.
Gonçalves confirma: “Quando essa pessoa retorna à comunidade, ela volta a cometer a violência novamente”. O advogado também sugere rever a masculinidade que perpassa a criação de meninas e meninos. “O trabalho não é realmente transformador se continuamos achando que é normal um adulto se relacionar com crianças ou adolescentes”.
“E se uma criança ligar para o disque 100?”
Embora estejam presentes em algumas regiões, canais de denúncia e de acolhimento específicos para atender crianças e adolescentes ainda não conseguem cobrir o país inteiro. Além disso, delegacias de polícia e o sistema de justiça foram criados sob a ótica dos adultos e não estão preparados para atender crianças e adolescentes, aponta Gonçalves. “Será que se uma criança ligar para o Disque 100, teremos um profissional qualificado para atendê-la? A resposta é não”.
Muitas vezes, as crianças sequer conseguem ser retiradas do contexto da violência sexual. No caso de Sophia, sempre que as denúncias eram feitas ao Conselho Tutelar, o pai era orientado a procurar a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, mesmo o Conselho tendo autonomia para fazer a denúncia nesses casos. Após a morte da menina, a polícia civil do Mato Grosso do Sul recomendou que o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência fosse feito em regime de plantão também nas Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres, em Campo Grande. No início de maio, foi inaugurada uma sala especial para atender crianças na Delegacia de Pronto-Atendimento Comunitário da cidade.
O Disque 100 é o principal canal para denunciar casos suspeitos de violência contra crianças e adolescentes e exploração e abuso sexual. A denúncia é anônima e as linhas funcionam 24 horas, todos os dias da semana. A ligação é gratuita e tem atendimento via WhatsApp (61) 99611-0100, pelo site da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos ou por videochamada em Língua Brasileira de Sinais (Libras). O aplicativo Direitos Humanos Brasil ou o número de WhatsApp (61) 99656-5008, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, também recebem denúncias anônimas. Denúncias presenciais podem ser feitas nas delegacias de polícia e nos Conselhos Tutelares de cada município.
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Escutar uma criança vai muito além do ouvido
A partir do questionamento se os adultos estão atentos aos sinais das crianças, o curta-metragem “Eu tenho uma voz”, produzido pela Childhood Brasil, narra as diferentes fases da vida de uma menina que sofreu abuso sexual na infância.