Como criar um Natal mais brasileiro para as crianças

Especialistas indicam como celebrar o fim de ano usando referências negras e indígenas e fugir dos estereótipos europeus

Fernanda Martinez Publicado em 10.12.2025
Imagem mostra foto da família da pedagoga Tatiane Santos. Ela, seu marido e os dois filhos pequenos estão sorridentes em frente a um cenário natalino. Todos usam roupas brancas com estampas geométricas coloridas de inspiração africana. Ao fundo, há decoração com árvore de Natal e luzes.

Resumo

Especialistas ajudam a ressignificar o Natal com referências negras e indígenas, ampliando o repertório das crianças. A ideia é buscar alternativas para os pinheiros com neve e estereótipos europeus que ainda dominam o imaginário das festas, mas não refletem o Brasil.

Nosso Natal não tem neve, mas tem manga, praia, rio cheio e sol estalando. Apesar disso, quando essa época do ano chega, o que costuma aparecer são pinheiros cobertos de gelo, personagens brancos e presépios europeus saídos de um inverno que nunca pisou aqui.

O recado fica subentendido: o que é mágico, bonito e especial quase nunca se parece com a gente, nem com as nossas crianças. Esse imaginário estreito não é apenas uma escolha estética, mas o modo como ensinamos quem protagoniza nossas histórias.

“O Brasil é um país de maioria negra, indígena e miscigenada, mas as imagens que embalam as crianças são quase sempre importadas de uma realidade que não é nossa, de corpos que não nos representam”, afirma Tatiane Santos, pedagoga e especialista em educação racial infantil. “Quando proporcionamos um repertório para além do Natal europeu, ganhamos verdade e justiça.”

Ampliar o imaginário infantil e superar as referências europeias “é um ganho em humanidade”, diz o professor e escritor indígena Daniel Munduruku. “Há culturas e crenças diferentes e outras formas de celebrar. Os povos indígenas se entendem como parte de um ciclo de tempo que os tornam parte da natureza. Por isso, a partilha não é só com troca de presentes, mas com atos de cuidado com todos os seres vivos.”

E se mudarmos o cenário? Se as festas celebrarem a floresta e os rios que nos atravessam, os terreiros e quilombos que sustentam nossa história, as múltiplas infâncias indígenas que existem no país? Ao Lunetas, Tatiane Santos e Daniel Munduruku sugerem um fim de ano com a cara do Brasil.

Resgatando a ancestralidade negra

Um fim de ano afrocentrado não é só “mudar a decoração, é resgatar o que foi perdido na história do povo preto e recriar rituais que façam sentido para cada família”, indica Tatiane.

Para ela, quando criamos possibilidades para além do Natal europeu:

  • Combatemos o racismo estrutural que coloca o branco como padrão de beleza, bondade e pureza;
  • Reconhecemos a contribuição dos povos africanos e afro-brasileiros na cultura, na religiosidade, na culinária, na música;
  • Formamos crianças que entendem diversidade como algo natural, não como “tema do dia 20 de novembro” (data que marca a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, e se tornou o Dia da Consciência Negra).

“Uma educação antirracista não é um projeto pontual, é prática cotidiana – inclusive nas festas.”

Imagem mostra foto da família da pedagoga Tatiane Santos. Ela, seu marido e os dois filhos pequenos estão sorridentes em frente a um cenário natalino. Todos usam roupas brancas com estampas geométricas coloridas de inspiração africana. Ao fundo, há decoração com árvore de Natal e luzes.
Tatiane e sua família em ensaio para as comemorações de Natal

Onde o Natal encontra nossas raízes

Para ressignificar o Natal, precisamos “trocar o imaginário importado por referências que tenham o cheiro de casa de vó, de terreiro, de quilombo, de roda de samba”, sugere Tatiane. “Temos que colocar nossas famílias em destaque: em quadros, ilustrações e fotos que mostram crianças negras rindo, correndo e ocupando o centro da cena.”

A seguir, ela indica caminhos para celebrar com axé, verdade e pertencimento:

  • Montar uma árvore de Natal com tecidos afro-brasileiros, símbolos adinkra (imagens do povo Ashanti, de Gana, usadas em tecidos, logotipos, cerâmica e arquitetura), bolas ou pendentes com palavras como “axé”, “ubuntu”, “quilombo”, “afeto”;
  • Usar um presépio com Maria, José e Jesus negros — “Afinal, se queremos aproximar a cena da nossa realidade e recuperar a ancestralidade perdida, precisamos também renegociar as imagens sagradas”, afirma;
  • Procurar enfeites de Papai Noel com a pele retinta. Se não achar, adaptar os que já tem em casa, por exemplo, enfeitando a imagem com turbante ou gorro feito de tecido africano;
  • Preparar a mesa com tecidos como chita, algodão cru, renda e estampas afro. As cores podem ir além do dourado, vermelho e verde: tons de marrom, terra, âmbar e laranja lembram pele, barro, sol e fogo;
  • Decorar a casa com materiais naturais, como sementes, conchas, folhas secas, galhos, pedras, aproximando as crianças da natureza e da ideia de ancestralidade vinculada à terra;
  • Usar madeira, sisal, palha, barro remete aos artesanatos de comunidades quilombolas e de matriz africana.

As histórias que circulam nas tradições indígenas

O Natal não era uma tradição indígena até a chegada dos missionários jesuítas em 1549, que introduziram a celebração cristã e seus rituais no Brasil. Com a conversão dos povos ao catolicismo, as comunidades passaram a incorporar a prática, que hoje faz parte do cotidiano de muitos deles.

Foi assim com o escritor Daniel Munduruku que, desde criança, conviveu com o Natal como prática religiosa. Ele conta que nunca viu nenhuma adaptação dos rituais, porque sempre foi católico e viveu com as mesmas simbologias cristãs. Porém, ressalta uma visão de mundo diferente que proporciona que a data seja menos ligada ao consumo e mais ao afeto.

“Trocar presentes não faz parte do cotidiano indígena, por conta da nossa noção cíclica do tempo”, explica. “O que as comunidades fazem é trocar histórias. Incentivamos as crianças a acumularem vivências — delas e de outras pessoas —para compartilharem no dia da passagem do ano.”

Imagem mostra foto do escritor indígena Daniel Munduruku. Ele sorri enquanto segura um microfone durante uma apresentação. Ele usa um cocar de penas coloridas e veste blazer escuro sobre camisa clara.
Escritor Daniel Munduruku durante apresentação

Natureza, encantados e novos sentidos

Para Daniel, incluir referências indígenas no Natal significa dar novos sentidos à festa a partir da relação profunda dos povos originários com a natureza e com o tempo. “Cada símbolo deve ser apresentado às crianças de forma contextualizada, para que ampliem seu repertório com cuidado e respeito”, afirma.

A seguir, o escritor dá algumas ideias para celebrar a floresta, os encantados e a passagem do tempo:

  • Montar uma árvore de Natal com tecidos afro-brasileiros, símbolos adinkra (imagens do povo Ashanti, de Gana, usadas em tecidos, logotipos, cerâmica e arquitetura), bolas ou pendentes com palavras como “axé”, “ubuntu”, “quilombo”, “afeto”;
  • Usar um presépio com Maria, José e Jesus negros — “Afinal, se queremos aproximar a cena da nossa realidade e recuperar a ancestralidade perdida, precisamos também renegociar as imagens sagradas”, afirma;
  • Procurar enfeites de Papai Noel com a pele retinta. Se não achar, adaptar os que já têm em casa, por exemplo, enfeitando a imagem com turbante ou gorro feito de tecido africano;
  • Preparar a mesa com tecidos como chita, algodão cru, renda e estampas afro. As cores podem ir além do dourado, vermelho e verde: tons de marrom, terra, âmbar e laranja lembram pele, barro, sol e fogo;
  • Decorar a casa com materiais naturais, como sementes, conchas, folhas secas, galhos, pedras, aproximando as crianças da natureza e da ideia de ancestralidade vinculada à terra;
  • Usar madeira, sisal, palha, barro remete aos artesanatos de comunidades quilombolas e de matriz africana.

“Quando incorporamos elementos indígenas com respeito, o Natal deixa de ser uma repetição automática e passa a ser uma oportunidade de reencontrar sentidos — para nós e para as crianças.”

Leia mais

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS