Episódios precoces de misoginia chamam atenção e ganham amplitude na internet, onde meninos estão cada vez mais expostos a conteúdos tóxicos
O ódio de meninos contra meninas cresce nas redes e nas escolas. Especialistas apontam como motores desse fenômeno, a crise da masculinidade, a falta de cuidado emocional e os algoritmos que lucram com o ódio.
As diferenças entre meninos e meninas que já aconteciam na vida off-line ganharam amplitude principalmente entre a geração Alfa (nascidos entre 2010 e 2025), os primeiros a nascer totalmente conectados à internet e em meio às tecnologias digitais. Se inseguranças sobre identidade e autoimagem são naturais durante a adolescência, agora as redes sociais exploram essas fragilidades ao máximo, diz a psicanalista Vera Iaconelli.
De acordo com ela, esse ambiente exerce uma “ascendência gigantesca sobre uma geração inteira de meninos que se sente fragilizada”. Dessa forma, “em vez de atravessarem inseguranças com honestidade e apoio mútuo, acabam se agrupando em torno de um inimigo comum: as mulheres. Assim a misoginia, ou seja, o ódio contra as meninas, vira o que os une.”
“A rede social não é neutra”, reforça Bruna Della Torre, pesquisadora de pós-doutorado no Centro Käte Hamburger de Estudos Apocalípticos e Pós-apocalípticos, da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. “A gente não sabe como funciona o algoritmo, mas sabe que ele privilegia o que engaja mais. E o ódio engaja. Nesse sentido, o ódio às mulheres e às meninas virou um produto lucrativo.”
O discurso dessas páginas é claro: o mundo é hostil com os homens, e as mulheres são manipuladoras, falsas e ameaçadoras. Ou seja, mais do que discursos de ódio, trata-se de um ecossistema inteiro, sustentado por algoritmos que amplificam o engajamento a qualquer custo.
Misoginia
Ódio, aversão ou desprezo contra mulheres. Pode se manifestar em comentários, atitudes, violência física, simbólica ou psicológica. É uma forma estrutural de opressão presente em diversas culturas e sistemas sociais.
Algoritmo
Conjunto de regras usado por redes sociais para decidir o que cada usuário vê em sua tela. Os algoritmos favorecem conteúdos que geram mais engajamento — muitas vezes polêmicos, violentos ou extremistas — porque mantêm as pessoas conectadas por mais tempo.
Plataformas como o TikTok, por exemplo, têm alimentado essa dinâmica. Comunidades como as dos incels (homens celibatários involuntários) e do movimento red pill, por exemplo, oferecem respostas simplistas e perigosas para a confusão emocional vivida por muitos meninos.
Ao criar dois perfis fictícios de meninos de 14 e 15 anos no TikTok e interagir por dois meses com os conteúdos sugeridos pela plataforma, os pesquisadores de um monitoramento conduzido pelo Núcleo Jornalismo e pela Revista AzMina observaram uma escalada na exposição a conteúdos de extrema direita, desinformação política e misoginia.
“Hoje, os adolescentes não perguntam mais para os pais, professores ou amigos. Eles perguntam para o Google, para o TikTok. Portanto, eles confiam mais nas redes do que no mundo real”, observa Vera. “Isso está moldando profundamente a subjetividade deles.” O resultado é uma geração que se forma emocionalmente a partir de vídeos curtos, superficiais e, muitas vezes, violentos.
“A violência de gênero não é nova”, afirma a pesquisadora Bruna Della Torre. Mas a presença nas camadas mais jovens pode estar associada à chamada “violência de segunda mão”, ou seja, aquela transmitida pelos pais ou adultos mais próximos.
“No Brasil, a gente está vendo o aumento da ascensão de movimentos como o red pill e os incels, marcados por um ódio profundo às mulheres e que, por fim, chega às crianças”, explica Bruna.
Red pill
Inspirado no filme “Matrix”, o termo foi apropriado por grupos machistas on-line para se referir a uma “despertar” sobre a suposta dominação feminina na sociedade. É a base de um movimento que prega a submissão das mulheres e a restauração da “masculinidade tradicional”.
Incel (involuntariamente celibatário)
Comunidade on-line de homens que se dizem incapazes de manter relações afetivo-sexuais e culpam as mulheres por isso. Frequentemente cultivam discursos misóginos, ressentidos e, em casos extremos, violentos.
Para a psicanalista Vera Iaconelli, o processo de emancipação feminina já enfrentou muitas barreiras, mas, ao conquistar novos espaços hoje, exige uma reconfiguração das relações de gênero. Algo que parte dos homens resiste a fazer. Por isso, ela também vê relação entre esse fenômeno e o avanço das mulheres na sociedade.
“O que se espera dessa nova geração de homens é que caminhem lado a lado com as mulheres, e não à frente delas. Para alguns, isso parece uma perda, quase como um retrocesso. Mas, na verdade, é um ganho coletivo, inclusive para os homens, que deixariam de sustentar uma falsa superioridade, impossível de manter”, avalia.
Um levantamento da empresa de pesquisa Gallup, nos Estados Unidos, revelou um dado preocupante: entre jovens de 18 a 30 anos, os homens estão cada vez mais conservadores, enquanto as mulheres da mesma faixa etária caminham em direção ao progressismo. A diferença entre eles chega a 30 pontos percentuais.
“A gente sabe que, no mundo todo, a masculinidade está em crise”, completa Bruna. Para ela, isso está diretamente ligado ao avanço dos movimentos feministas e a forte reação que gerou. “Parte dessa resposta vem em forma de ódio.”
Masculinidade frágil
Conceito que descreve um modelo de masculinidade que depende da negação do feminino e do reforço constante de uma suposta superioridade. Assim, homens com masculinidade frágil sentem-se ameaçados por mulheres autônomas ou por comportamentos que fogem ao padrão “viril”.
Backlash
Reação negativa e organizada contra o avanço dos direitos das mulheres e das minorias. Pode vir sob forma de ataques, retrocessos legais, campanhas de desinformação e recrudescimento de discursos conservadores, por exemplo.
Enquanto meninos são ensinados a expandir o olhar “para fora”, exercitando habilidades sociais e a criatividade, as meninas são ensinadas a olhar “para dentro”, com a preocupação voltada ao próprio comportamento e à beleza.
As diferenças na criação, segundo a psicanalista Vera Iaconelli, resultam em perdas para ambos os lados. “As mulheres perdem essa orientação para o mundo público, para a conquista dos espaços, para se sentirem mais à vontade no mundo. Já os homens perdem a afinidade com a reflexão, com o mundo interno, com os afetos, com a intimidade.”
Processo pelo qual meninos e meninas aprendem desde cedo os papéis sociais considerados “adequados” ao seu gênero. Envolve família, escola, mídia e cultura. No caso dos meninos, essa socialização costuma reprimir emoções e valorizar força, competição e domínio.
Diante de uma geração de meninos crescendo sem espaço para sentir, expressar e elaborar suas emoções, o terapeuta Fábio Manzoli recomenda acolhimento. “Quando um menino encontra um espaço onde pode ser quem é, sem julgamento, ele floresce. Deixa então de ser explosivo, se torna mais seguro e afetivo. Mas para isso, precisa se sentir visto e aceito.”
Há dois anos, ele reúne meninos de 10 a 15 anos para falar sobre saúde mental e masculinidade saudável, e tirar dúvidas sobre assuntos que não se sentem à vontade para falar com os pais ou professores. “Eles costumam chegar fechados, inseguros, com medo até das próprias emoções.”
Manzoli associa esse receio da rejeição e dificuldade de demonstrar afeto diretamente ao modo como os meninos são ensinados a ser homens. Para ele, o modo como os meninos são ensinados a reprimir os sentimentos, para não demonstrarem feminilidade e serem viris é violento.
“Eles aprendem desde cedo que chorar é coisa de mulherzinha, e que ser mulherzinha é ser inferior. Ou seja, os homens não podem ser sensíveis. E tudo aquilo que a gente reprime dentro de nós, a gente projeta e reprime fora de nós”, diz. “Aos poucos, percebem que sentir não os torna menos homens, os torna humanos.”
“Não tem como ser saudável se você vive engolindo o choro”
“Um tema muito comum nas rodas de escuta é o que pode acontecer se forem gays, por exemplo”, relata Fábio. Segundo o terapeuta, a dúvida não está relacionada à orientação sexual em si, mas sim “ao bullying massivo que sofrem, sempre em torno do ‘viadinho’”, como descreve. Enfrentar esse tipo de intimidação de forma contínua, sem poder expressar o que sentem, leva muitos meninos a internalizar o sofrimento. “A sensibilidade vira medo, e o medo vira raiva.”
A repressão emocional pode ajudar a explicar por que manifestações de ódio contra meninas têm se tornado cada vez mais frequentes. Para reverter esse cenário, Vera Iaconelli defende que não dá para depender apenas de iniciativas isoladas. Isto é, a mudança precisa ser coletiva e e envolver estruturas de cuidado, escuta e transformação.
“O cuidado não pode ser terceirizado para mães sobrecarregadas ou para terapeutas individuais. Precisamos, portanto, de políticas públicas, campanhas de conscientização, formação de professores e regulação das redes sociais”, afirma.
Por fim, a pesquisadora Bruna Della Torre complementa dizendo que também precisamos mudar as narrativas que formam meninos e meninas. “Hoje, a socialização de gênero está sendo feita por influenciadores misóginos no TikTok. Então, precisamos disputar esse espaço, criando conteúdos que valorizem o afeto, a empatia e a cooperação.”
Do mesmo modo, para o terapeuta Fábio Manzoli, a esperança para superar desafios como o ódio contra as meninas está numa reeducação emocional dos meninos:
“Quando um menino aprende que pode chorar, pode amar, pode falar o que sente, ele não vira uma ameaça. Ele vira potência. E ninguém perde com isso. Todo mundo ganha.”
Dados da Safernet, organização que atua na defesa dos direitos humanos on-line, reforçam a gravidade do problema: o TikTok esteve entre os 10 domínios mais denunciados do mundo por conteúdos de violência ou discriminação contra mulheres, ocupando o primeiro lugar em 2021 e 2022.