Narrativa reflete sobre as divergências a partir de uma brincadeira de criança enquanto os vencedores das categorias juvenil e educação celebram a diversidade
A 66ª edição do Prêmio Jabuti teve como melhor livro infantil ‘Cabo de Guerra’, de Ilan Brenman e Guilherme Karsten. O juvenil do ano ficou com a coletânea de textos indígenas organizada por Kaka Werá ‘Apytama: Floresta de histórias’.
Tudo começa com uma disputa de dois cachorros por uma linguiça. Seus tutores, um de cada lado, puxam daqui e de lá. Os reforços inusitados para esse “cabo de guerra” começam a chegar. Então, aparecem um padre e um rabino, os três porquinhos e o lobo mau, palhaços, mágicos e outros personagens que fazem parte do imaginário infantil. Até mesmo Pelé e Maradona! Um de cada lado deste cabo de linguiça.
Inspirado em uma brincadeira de criança, o vencedor do prêmio Jabuti na categoria infantil é o livro “Cabo de Guerra”, de Ilan Brenman e Guilherme Karsten, que levou também o prêmio de melhor ilustração. Este é o quinto título da coleção ‘Imagens que contam histórias’, uma parceria dos autores pela editora Moderna. A partir de narrativas visuais, a coleção convida o leitor a se divertir e a ampliar o olhar sobre o mundo.
“Estou nas nuvens com a premiação. Fico muito feliz que tenha sido esse livro porque coroa a minha parceria com o Ilan”, afirma Karsten, que levou o Jabuti de melhor ilustração também em 2021, com o livro “Carona” (Companhia das Letrinhas).
O ilustrador explicou sobre o que “Cabo de guerra” pretende despertar a partir de uma narrativa sem texto, apenas visual. “Nós somos iguais, enfrentamos os mesmos dilemas e alegrias, pois nos emocionamos com as mesmas coisas. Mas criamos problemas uns com os outros quando a gente deveria ser bons amigos”, conta Karsten. “A ideia é divertida, mas, na essência, carrega o que pensamos inicialmente”, completa Brenman.
“É sobre entender que somos parecidos e quanto mais nos dermos conta disso, as tensões podem diminuir entre as pessoas.”
Uma linguiça. Dois cachorros. Um homem. Uma mulher. Um lobo. Os três porquinhos. Pelé. Maradona. Onde essa disputa vai parar? Era tanta gente de um lado e do outro que a confusão só aumentava. Embora o livro não tenha texto, o que pode assustar alguns adultos por não ter as palavras como guia para a leitura, para as crianças é um convite a imaginar. Brenman e Karsten mostram que nem toda a história precisa de palavras escritas para nos contar algo.
Nesse cabo de guerra, quem ganha a disputa? Os da direita ou os da esquerda? Os maiores ou os mais fortes, os mais inteligentes ou o lado que tiver a maior torcida? O final inusitado deixa perguntas que podem abrir muitas conversas. Será que juntos somos mais fortes?
À primeira vista, o livro pode ser encarado apenas como “divertido”. E sendo assim, já cumpriu o seu propósito para os autores. Afinal, as obras que divertem são como uma isca para fisgar os leitores. Além da diversão, a narrativa traz outras camadas, de acordo com o mergulho que cada leitor fizer dele.
“O livro tem uma história para contar, mas não uma lição de moral que ensina a criança como ela deve ser uma pessoa melhor”, destaca Karsten. “Acredito que a conversa que rende ao final do livro começa com uma pergunta: ‘Será que vale a pena mesmo a gente brigar?’”, completa.
A literatura para a infância encarada como uma expressão artística, não como um material didático ou utilitário, traz olhares surpreendentes, como destaca Brenmam, “esse é o paradoxo, porque certamente as obras contribuem para a educação, traz valores e desdobramentos que a gente enquanto autor nem pode imaginar, pois é a função da própria arte”.
Em um reino muito distante, a população toda vivia a flutuar. As pessoas dali levavam uma vida sem tropeços e sem percalços. Mas tudo muda com o nascimento de Gaia: a única pessoa do reino a andar com os pés no chão. Por isso, ela podia correr, pular, sentir a terra entre seus dedos, e também cair, se machucar e levar pontos na testa. É desse modo que a intensidade da personagem passa a perturbar a paz e a ordem do pacato povoado.
Livro inspirado em uma canção do músico Renato Gama, que integra o Coletivo Sá Menina. Ao celebrar a beleza e a ancestralidade das crianças negras, a obra traz uma protagonista que é “neguinha, sim e muito feliz!”. Afinal, seu nariz é belo como as ondas do mar, seus olhos são de jabuticaba e ela tem um cabelo brilhante como sol.
O menino Ícaro lançou o desafio. “Duvido que você tem coragem de atravessar esse rio pisando nas costas dos hipopótamos…”. A partir de então, ele vive muitas descobertas guardadas para quem vive em “Ao Pé da Letra”, assim como para a família de Ícaro, que atravessou os mares para viver naquele reino, onde os moradores economizam palavras e sorrisos.
Raquel Matsushita brinca neste livro com a ambiguidade que faz parte da infância. Entre o medo de deixar situações conhecidas e o desejo de explorar o novo, o leitor acompanha a jornada do passarinho Oto e os fios de afeto que são construídos ao longo da vida.
A homenagem desta edição foi para a escritora, contista, jornalista, tradutora e artista plástica Marina Colasanti. Ela já publicou mais de 70 obras para crianças e adultos, e já venceu sete vezes o prêmio Jabuti. Além disso, a autora foi finalista do Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantil. Entre suas obras, algumas das mais conhecidas destinadas ao público infantojuvenil são “Uma ideia toda azul”, o melhor livro para jovens e “A moça tecelã”, altamente recomendável para crianças, ambos pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
O Prêmio Jabuti é dividido em quatro eixos: Literatura, Não Ficção, Produção Editorial e Inovação. Nesta 66º edição, recebeu mais de 4.100 obras para concorrer à premiação e estreou três novas categorias no eixo Não Ficção: Saúde e Bem-Estar, Negócios e Educação. Confira os premiados de categorias que dialogam com a infância e juventude.
Conhecida nas redes como “uma intelectual diferentona”, Bárbara Carine vem se deburçando sobre a questão racial no ambiente escolar. Autora de “Querido estudante negro” e “Como ser um educador antirracista”, ambos publicados pela Planeta, levou este ano o Jabuti na categoria Educação, do eixo não-ficcção. No livro, ela esmiuça conceitos ligados à luta antirracista, o pacto da branquitude, racismo estrutural, cotas raciais e educação emancipatória. Apesar de não ser um manual, o texto convida educadores a (re)pensar as ações pedagógicas hoje.
Vencedor do eixo literatura, na categoria literatura juvenil, a antologia conta com alguns dos principais autores pioneiros responsáveis pelo fomento da literatura indígena no Brasil. Daniel Munduruku, Kaká Werá, Cristino Wapichana, Ademario Ribeiro Payayá, Tiago Hakiy. Além disso, tem representantes das gerações mais jovens como Edson Kaiapó, Auritha Tabajara, Trudruá Dorrico e Márcia Kambeba.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os povos originários atuais estão distribuídos em 225 sociedades indígenas, com 180 línguas e dialetos distintos. Dessa forma, a pluralidade é o ponto de partida para esta coletânea organizada por Kaka Werá, um dos autores responsáveis pelo fomento da literatura indígena no Brasil.
Ele aponta que os autores escolhidos têm como característica comum “a dedicação à arte literária e a utilização da literatura como uma estratégia de (re)existência do modo de ser e de pensar as origens as quais pertencem”. Além disso, frisa que esses autores “revelam seus respectivos dons peculiares no uso da palavra escrita”.
Esta floresta de histórias apresenta, portanto, “um território de imagens e conceitos que traduzem a identidade e a consciência de pertencimento de uma cultura plural”, diz Kaka. “Os valores principais apontam para o cuidado com a natureza, com as diferenças, com o poder e com o reconhecimento da memória como portadora de saberes”.
Vencedor da categoria fomento à leitura, o projeto “IBEAC Literatura: os caminhos literários das bibliotecas comunitárias de Parelheiros” é resultado das observações, pesquisas e experiências sobre uma biblioteca comunitária que desperta o interesse à leitura e transformações sociais entre os jovens.
Criado na década de 1980, o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC, tem a missão de disseminar a cultura de direitos humanos. Desse modo, a transformação acontece com a movimentação de pessoas, comunidades e territórios que fortalecem a cidadania.
Desde 2008, o IBEAC concentra suas atividades em Parelheiros, periferia do extremo sul de São Paulo, considerada a Amazônia Paulistana. Nas quatro bibliotecas mantidas no território, a gestão é feita pela comunidade e para a comunidade. Ou seja, os resultados positivos vêm, então, nas palavras e na trajetória de cada um dos mais de 1.800 jovens envolvidos.
A educadora social, ativista e escritora Bel Santos Mayer registra no livro “Parelheiros, idas e vi(n)das: ler viajar e mover-se com uma biblioteca comunitária” (Instituto Emília e Solisluna) as vivências desses jovens. “Quanto mais liam, mais familiarizados ficavam com os territórios literários. Aos poucos, traçavam suas rotas para seguir as viagens propostas pelos autores/as. Cada jornada lida ampliava memórias, repertórios de palavras que permitiam recriar paisagens”.
É assim que em Palheiros as bibliotecas se tornam espaços que acolhem vivências literárias, poéticas e educacionais. Ao mesmo tempo, são lugares onde o acesso aos livros é tido como um direito humano e onde se escreve novas histórias, como ressalta Mayer.
“Se nas histórias contidas em suas mãos sabiam que existiria ‘um ponto de chegada, um vislumbre no horizonte’, na BCCL [Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura] foram se colocando em caminho, rumo a um futuro construído na primeira pessoa do plural. ‘Nós’ estávamos construindo uma história coletiva em Parelheiros e também uma história de bibliotecas comunitárias no Brasil”.