Para educadores, visitas devem priorizar vivência e despertar fascínio pelos conteúdos
Associados a espaços cheios de “não pode”, museus podem se transformar em lugares mais acolhedores para as crianças, suas escolas e famílias. Além da acessibilidade, tudo depende da mediação ativa e do equilíbrio entre informações e tempo para o encantamento.
Felipe, com cinco anos e onze meses, é a prova de que museu é lugar para criança, sim. Ele se encaixa dentro de um bambolê, esticando seus bracinhos e pernas, e afirma: “Leonardo da Vinci que fez esse símbolo, é de um homem.” Na tentativa de reproduzir as proporções ideais do Homem Vitruviano, a memória do menino se transforma em ação, encontrando a perspectiva do psicólogo Lev Vygotsky de que o brinquedo é muito mais a lembrança de alguma coisa que realmente aconteceu do que imaginação.
“Os primeiros cuidadores da criança também são os primeiros mediadores de seu acesso à cultura”, dispara a arte-educadora e pesquisadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Miriam Celeste. A opinião não tem origem apenas na observação dos mapas de convivência das crianças, mas na própria experiência como avó de Felipe. Afinal, foi ela quem registrou a cena do bambolê e levou o menino, em 2020, à exposição “Leonardo da Vinci – 500 anos de um gênio”, no MIS Experience, espaço do Museu da Imagem e do Som, em São Paulo.
Para Miriam, esse acesso proporciona a ampliação de repertórios inspiradores para a leitura do mundo na infância. E se engana quem acha que ser mediador desse conhecimento significa apenas ter estudos aprofundados sobre arte ou organizar uma “aula” sobre cada obra exposta. Como ressalta a professora, muitas vezes basta estar presente, vivenciando o momento e descobrindo junto com a criança.
“Não devemos ‘escolarizar’ a experiência da criança nas museus”
Valorizar o silêncio e oferecer espaços para que elas tenham suas próprias percepções e experiências sensoriais a partir das formas, texturas e tonalidades diante de si é uma das dicas de Miriam: o que é esse objeto diante de mim?; o que levou esse artista a pensar numa coisa dessas?. “É preciso dar lugar ao encantamento e também ao estranhamento”, defende. Isso porque, nos museus, os olhos não encontram apenas beleza, mas memórias de tristeza e dor, que atingem as crianças de maneiras particulares.
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Essa relação entre arte e crianças também pode ser construída em visitas on-line a museus. Claro que as experiências serão distintas, mas, como ressalta Miriam, podem ser complementares. Por exemplo, uma escultura de grandes proporções produz um efeito aos olhos da criança que se depara em pé diante do objeto, mas detalhes como pequenas rugas e fios de cabelo branco, que passam batido por quem observa uma pintura na parede, podem ser ampliados na tela de um computador.
Hoje, muitas experiências on-line permitem que as crianças explorem obras de arte das maneiras mais inusitadas possíveis, tornando tudo uma grande brincadeira, seja colorindo uma gravura de estilo ukiyo-eArte de impressão em xilogravura desenvolvido entre o século 17 e 20 no Japão do artista japonês Katsushika Hokusai ou “escutando as cores” de uma pintura de Kandinsky.
No entanto, nem sempre é simples ampliar as experiências culturais em família. Basta pesquisar na internet o termo “lugares para crianças” em qualquer cidade brasileira que vamos nos deparar com espaços exclusivos para crianças em shoppings, restaurantes com brinquedotecas e parquinhos ao ar livre. Já os museus costumam ser associados a espaços cheios de “não pode”, muitas vezes conflitantes com as demandas de bebês (chorar, mamar) e crianças pequenas (falar, correr).
Mas tudo isso é uma questão de convivência, segundo a educadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), Renata Sant’anna. Ou seja, se a criança, desde pequena, frequenta museus com a escola ou com a família, ela vai aprendendo que eles não são exatamente como parques de diversões e descobrindo outras formas prazeirosas de usufruir do espaço.
Há 33 anos como curadora do MAC, Renata pensa em como os museus podem se tornar lugares mais atrativos e acolhedores para as escolas e suas turmas, inspirada em programas como o Art around the corner, da National Gallery ou dos Ateliers enfants, no Museu do Louvre, em Paris, que cria espaços inteiros de arte voltados ao público infantil.
Toda curadoria é uma escolha e para as crianças não é diferente. Nessa preparação, se leva em consideração a altura da criança para que obras fiquem no nível do olho e também contextos em que a exposição se torne mais independente do discurso de professores, pais e cuidadores. Apesar de valorizar a presença do educador, Renata enfatiza que o primeiro convite é para o silêncio.
Crianças também fazem curadoria
E quando as crianças se tornam curadoras de arte? Uma exposição realizada em 2017 no Rio Grande do Sul demonstrou que isso não é só possível, mas desejável pela comunidade escolar. A experiência aconteceu com crianças de quatro a seis anos e professores da escola InfânciaS, em parceria com pesquisadores e profissionais do Museu da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As autoras Magali Oliveira Frassão e Leni Vieira Dornelles contam mais sobre esse processo no artigo “Quem disse que as crianças não sabem fazer curadoria? Ver diferentes versões é legal!”.
Durante meses, as crianças visitaram diversos espaços expositivos de arte na cidade para “entrarem no clima”, interagindo com materiais expressivos – de abóboras a pedras, argila e palitos. Depois, produziram e organizaram suas “artistagens” na escola. “O museu tornou-se um espaço próximo no qual as crianças multiplicaram modos de ver e de dialogar sobre o que haviam produzido”, relatam as autoras.
Organização e desmonte, escolha e descarte, mudança de lugares: a inclusão dos pequenos em todos os momentos de diálogo – desde a ideia da ação até a exibição das obras aos visitantes – lhes permitiu uma nova forma de estar presente nos museus de arte, enquanto protagonistas, indo além das convenções das exposições de “gente grande” para onde passaram a olhar também com mais propriedade.
Segundo Renata, pode ser que o que instigue a criança seja o canudinho usado para pintar, um cachorrinho no quadro ou a dúvida “será que quebra se eu encostar?”. “Toda a exposição tem uma narrativa, então a proposta é construir essa história junto com as crianças, a partir do que aquelas obras selecionadas dizem a elas”, conta. Em conjunto com esses elementos trazidos pelas crianças, a história do artista e de sua obra pode ser compartilhada e reconstruída de forma lúdica e interativa.
Ainda, para os mais pequenos, é possível proporcionar experiências de experimentação para que se relacionem com as obras em níveis mais concretos. Renata conta que, no caso de exposições como da artista plástica suíça Mira Schendel ou da escultora brasileira Lygia Clark, é possível disponibilizar papéis delicados para que crianças experimentem as possibilidades e dificuldades na manipulação dos mesmos materiais utilizados nas obras.
“O processo de mediação ativa exige um equilíbrio entre os momentos de explicações e momentos de conexão”, defende.
Para que isso ocorra, ressalta Renata, é importante que haja a participação do poder público, por meio de suas prefeituras e respectivas secretarias, para possibilitar o acesso das escolas públicas. “É diferente para escolas públicas e particulares, pois a decisão de visitar o museu exige recurso para o transporte, professores acompanhantes e outros funcionários para substituí-los nas escolas nas aulas com outras turmas”, diz.
Dados do IBGE apontam que, até 2019, mais de um terço das crianças e adolescentes até 14 anos não tinham acesso a cinemas, museus e salas de teatro. Também havia um fator racial: 37% da população preta e parda viviam em cidades sem museus, contra 25% dos brancos. Portanto, o investimento na arte precisa considerar as desigualdades existentes, repensando os endereços elitizados da arte.
A aproximação das crianças com a arte em museus depende da convicção de que o acesso à cultura é um direito das crianças.
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