O escritor português, que completaria 100 anos em novembro de 2022, reconhece na sua infância a base para se tornar o homem que foi
No centenário de José Saramago, as crianças também podem celebrar o autor lendo suas obras destinadas ao público infantil e conhecer episódios da infância do escritor, que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.
O último sobrenome de José de Sousa Saramago foi incluído por iniciativa do responsável pelo registro civil. Era o nome pelo qual sua família ficou conhecida na aldeia de Azinhaga, em Portugal, onde nasceu em 16 de novembro de 1922. Foi, portanto, o primeiro Saramago da família, fato descoberto apenas aos sete anos, na matrícula da escola primária.
Da infância de pés descalços, com noites embaladas pelas histórias que seu avô contava debaixo da figueira, guardou em si as memórias do rio, cores, aromas, afetos e acontecimentos ordinários e extraordinários que moldaram o homem que foi. Como ele dizia, “devo tudo o que sou àquela criança. Foi o meu arquiteto”. Filho e neto de camponeses que não sabiam ler nem escrever, Saramago teve como ofício a palavra.
Mas antes disso foi também serralheiro mecânico, desenhista, funcionário público. Adentrou o mundo das palavras como tradutor, editor, jornalista e, por fim, escritor. Seu primeiro livro foi presente da mãe, na infância. Durante os estudos de serralheria mecânica na escola industrial, já adolescente, a biblioteca municipal era o seu reduto.
“E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou”
A estreia como escritor aconteceu em 1947, com a publicação de “Terra do pecado”. A próxima viria apenas quase duas décadas depois. “Começava a tornar-se claro para mim que não tinha para dizer algo que valesse a pena. Durante 19 anos, até 1966, quando publicaria “Os poemas possíveis”, estive ausente do mundo literário português, onde devem ter sido pouquíssimas as pessoas que deram pela minha falta”, conta o autor em sua biografia, no site da Fundação José Saramago. Só a partir de 1976 que passou a viver exclusivamente da literatura.
Romancista, contista, dramaturgo e poeta, Saramago tem mais de 40 títulos publicados em 66 países e traduzidos em 48 idiomas. É o primeiro – e até então único – autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998. Faleceu em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, em 18 de junho de 2010, ao lado da esposa Pilar del Río, familiares e amigos.
José Saramago não foi uma criança leitora, de livros, podemos dizer. O que o menino de Azinhaga lia era o mundo. Lia a partir das histórias narradas por seu avô, dos afetos recebidos de sua avó, da busca de seus pais por melhores condições de vida. Foi na juventude que descobriu os livros de gente crescida, como disse certa vez, e quis saber o que eles contavam.
“A razão por que se abre um livro para ler é a mesma por que se olham as estrelas: querer compreender”
Com esses olhos de criança, de quem encara a vida sempre como uma interrogação, um mistério, Saramago se tornou escritor. Dizia que queria conservar o menino cheio de curiosidade da infância e primeira juventude por toda a vida.
Parte de seus textos, embora não de forma intencional, dialogam com a infância. Alguns deles foram transformados em livros ilustrados e oferecem às crianças a possibilidade de ter contato com a obra de um grande escritor que acreditava escrever para gente crescida.
Os bons livros “feitos para criança” são considerados livros sem idade, porque dialogam com a infância que já passou e também com a que está em curso. É o que acontece com a obra de Saramago direcionada aos pequenos leitores.
Apenas uma de suas mais de 40 obras foi criada intencionalmente para crianças. As demais derivam de obras para adultos. São crônicas e relatos autobiográficos com potência para dialogar com várias gerações.
O primeiro livro destinado às crianças – e único pensado para este público – é “A maior flor do mundo” (2001). Pilar del Río, presidente da Fundação José Saramago e com quem o autor foi casado, contou em uma entrevista que o texto foi feito a pedido de um amigo e publicado numa revista. Anos depois, seu editor encontrou o conto e o publicou como livro.
Outros dois livros para a infância vieram de “A bagagem do viajante” (1973), uma seleção de crônicas publicadas em jornais no fim da década de 1960. São eles: “O lagarto” (2016) e “Uma luz inesperada” (2022).
“As crônicas dizem tudo (e provavelmente mais do que a obra que veio depois) aquilo que eu sou como pessoa, como sensibilidade, como percepção das coisas, como entendimento do mundo: tudo isso está nas crônicas”
Já “O silêncio da água” (2011) é um dos contos que faz parte de “As pequenas memórias” (2006), seu livro autobiográfico. A ideia de escrever uma obra sobre si foi planejada e amadurecida por 20 anos. Um fato curioso é que o período retratado por Saramago nesse livro foram seus primeiros 15 anos de vida:
“O meu objetivo foi sempre recuperar, reconstruir, reconstituir a criança que eu fui. Essencialmente, ao que me parece, as adolescências assemelham-se todas. Só as infâncias são únicas”
O lançamento de “As pequenas memórias” ocorreu em Azinhaga, quando Saramago completou 84 anos. Já os livros ilustrados destinados aos pequenos leitores, à exceção de “A maior flor do mundo”, foram obras póstumas.
A seleção dos textos que dariam origem aos livros destinados à infância e seus ilustradores foi feita pela Fundação José Saramago. A publicação dos livros no Brasil é pela editora Companhia das Letrinhas.
Experiências vividas e rememoradas pelo autor. O que disse a avó, as aventuras que passou com um tio. Lugares por onde passeou descalço ou com botas ensebadas para dar conta da caminhada são as paisagens das histórias.
Coube aos ilustradores criar as narrativas visuais a partir das palavras de Saramago e do que vivenciou e nos contou Saramago menino. A leitura das imagens traz uma nova camada para os textos. Basta fazer o teste: leia a crônica ou o conto publicado na obra destinada aos adultos sozinho e, depois, o livro ilustrado com uma criança. São experiências de leitura distintas, a partir de um mesmo texto.
Quando lemos com as crianças, todos os detalhes podem ser observados e discutidos. Projeto gráfico, paleta de cores, capa e até a nota do editor sobre palavras e acentos, uma vez que o texto está em português europeu, passam a fazer parte da narrativa e ampliam a obra.
A expedição narrada em “Uma luz inesperada” é registrada no fim do livro como um mapa, onde vemos as passagens da história como marcos. Já a nova edição de “O silêncio da água” é aberta com ilustrações sem texto, convidando o leitor a se ambientar no rio antes de o fato começar a ser narrado em palavras.
Em “A maior flor do mundo”, Saramago abre diálogo com as crianças, para contar sobre sua ideia de uma história que poderia ser a mais bonita de todos os tempos se ele tivesse habilidade para escrever a esse público. “Na história que eu quis escrever, mas não escrevi, havia uma aldeia.” E assim, entramos na aventura com um menino “naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu”. Ele desbrava os territórios além de onde costumava ir e se depara com uma flor murcha. Após o ato de generosidade ao decidir salvá-la, o menino recebe como retribuição a sombra de uma grande pétala perfumada, com todas as cores do arco-íris. O pequeno passou a ser reconhecido como aquele que saiu da aldeia para fazer algo muito maior que o seu tamanho. Aí termina o conto, mas não o livro. Saramago deixa ainda um convite aos leitores que pode render.
O episódio, que beira o fantástico, tem nuances de ironia, uma das características presentes na escrita de Saramago. Aparece um lagarto gigante no meio de um bairro movimentado e, no auge da confusão, um acontecimento transforma tudo. Cabe ao leitor decidir se depois do ocorrido acredita ou não em fadas. O texto, uma das crônicas do livro “A bagagem do viajante”, ganha uma camada de humor com as xilogravuras do pernambucano J. Borges.
Um episódio da infância de Saramago, registrado em “As pequenas memórias” (2006), toma fôlego ao se transformar em livro ilustrado. Relançado em 2022 sob os traços e as cores marcantes da espanhola Yolanda Mosquera, o leitor é convidado a se ambientar no rio, com a narrativa visual que abre o livro. Nesta obra, acompanhamos a disputa de Saramago menino com um peixe, “que pela sua força, devia ser uma besta corpulenta”, em um dia de pesca no rio Almonda, que banha a aldeia onde viviam seus avós. A voz do menino, resgatada de seu baú de memórias, dialoga com a infância, a partir da aventura, da ingenuidade e também de uma pontinha de teimosia.
O convite para acompanhar o tio em uma expedição a pé até Santarém para vender bácoros, pequenos porcos criados pelos avós, se transforma em uma jornada de deslumbramento. Mais uma das crônicas de “A bagagem do viajante” que se transforma em livro ilustrado e nos leva em viagem, dia e noite, guiados pelas estrelas, lendo nas imagens o percurso de um menino, seu tio e alguns animais até “aquilo que não tornou mais a acontecer”. O extraordinário a partir do olhar da criança.
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