Só conseguiremos combater o trabalho infantil quando pararmos de banalizar pequenos corpos vivendo situações de violência
A pandemia e a crise socioeconômica empurraram milhões de crianças e adolescentes ao trabalho infantil e os esforços para erradicar o problema estagnaram. Combater a situação só será possível quando Estado e sociedade entenderem que lugar de criança é na escola.
Quase dois milhões de meninos e meninas vivem o trabalho infantil no Brasil. O que o Estado e a população brasileira têm a ver com isso? Tudo. Se de um lado há o enfrentamento descompromissado na erradicação desta questão social, de outro temos a letargia causada pela banalização de ver pequenos corpos, em sua maioria negros, trabalhando e vivendo as mais variadas situações de violência. Um combo de bases coloniais, ainda tão latentes neste Brasil de 2022.
Dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), apresentados em 2019, mostraram que 1,758 milhão de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos estavam em situação de trabalho infantil no Brasil antes da pandemia. Desses, 706 mil vivenciaram as piores formas de trabalho.
É sabido que este é um problema sem fronteiras. Segundo o relatório Child Labour: Global estimates 2020, trends and the road forward (“Trabalho infantil: estimativas globais de 2020, tendências e o caminho a seguir”, em tradução livre), o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil no mundo chegou a 160 milhões.
Pela primeira vez, em 20 anos, as tentativas para erradicar o problema estagnaram.
Ainda segundo o relatório, a pandemia de covid-19 agravou a condição de crianças e adolescentes em todo o mundo. Em 2020, o número de crianças de lares com baixa renda potencializada pela pandemia foi de cerca de 142 milhões, além dos 582 milhões de crianças que já estavam na pobreza em 2019.
As famílias dessas crianças e adolescentes sofreram perdas de emprego e renda, levando aquelas crianças que não estavam em situação de trabalho infantil a fazê-lo, e as que já estavam a trabalharem por mais horas e em condições mais violentas. A maioria desses trabalhos se concentram na agricultura familiar de subsistência, plantações comerciais, complexos agroindustriais, pesca de captura, aquicultura, atividades pós-colheita, processamento de pescado e silvicultura.
No Brasil, a situação não é diferente. A extrema pobreza – que atinge 17,5 milhões de famílias com renda per capita mensal de até R$105, segundo dados do Cadastro Único para Programas Sociais – fez muitos meninos e meninas ingressarem no trabalho infantil ou aumentarem suas horas de trabalho.
Por isso, neste mês de junho em que o mundo é alertado sobre o tema (12/6 de junho é o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil), entendo como uma oportunidade discutir como este problema tem afetado um pedaço do Nordeste brasileiro, a região com o maior índice de crianças nessa situação.
Quem transita pelas ruas de Fortaleza (CE) pode se deparar com cenas que despertam angústia e revolta: crianças nos semáforos ou empunhando papelões onde se lê “FOME” em letras garrafais. Uma impiedosa realidade que escancara o descaso que o estado do Ceará tem para com a garantia de direitos de crianças e adolescentes.
Em julho de 2021, a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social de Fortaleza (SDHDS) realizou o Censo Geral da População de Rua, que mapeou dados quantitativos relacionados a essa população na cidade. De acordo com o censo, cerca de 100 crianças e adolescentes entre 1 a 17 anos habitam as ruas de Fortaleza. A maioria é negra.
Com esses dados em mãos, crianças e adolescentes que estão em situação de rua deveriam ser prioridade para efetivação de políticas públicas, porém não o são. Um exemplo do descaso e da ausência do poder executivo é o programa Ponte de Encontro.
Criado em 2005, o programa tem em seus objetivos assegurar o trabalho social de abordagem e busca ativa que identifique nos territórios a incidência de mendicância, exploração econômica, trabalho infantil, dentre outros. No entanto, esse programa só foi instituído de fato como política pública em Fortaleza no ano de 2020.
Essa falta de prioridade se refletiu no orçamento. Em 2021, o valor fixado na Lei Orçamentária Anual (LOA) para o Programa Ponte de Encontro foi de R$738 mil – tal valor ainda foi reduzido ao longo do ano para o montante de R$311 mil. A LOA aprovada para 2022 trouxe um valor inicial ainda menor, de R$479 mil. Mais grave ainda é o fato de que, no ano de 2021, do valor previsto para o programa foram executados apenas R$2.490,95.
É desolador, cruel e inquietante ver tal descaso, com as ruas repletas de pessoas abandonadas, exatamente pela ausência de políticas públicas efetivas que possam alterar o presente e o futuro, principalmente de crianças e adolescentes que perdem direitos quando tem a rua como única escolha.
Diante do censo da população de rua, existe a oportunidade perfeita para que o município possa priorizar o Programa Ponte de Encontro, afinal, o próprio identificou um aumento de mais de 50% da população de rua em Fortaleza.
Além disso, Fortaleza goza de excelente saúde fiscal. Em 2021, houve aumento da receita tributária, melhorando a autonomia financeira do município em relação aos recursos do Estado e da União. Nesse sentido, a baixa previsão de recursos para o programa só pode ser explicada pela ausência de prioridade conferida pela gestão.
O combate ao trabalho infantil só será possível quando as Casas legislativas entenderem que lugar de criança e adolescente é na escola! Protegidos, alimentados, cuidados pela família e pelo Estado, com direito ao brincar assegurado e a possibilidade de sonhar futuros.
A rua não é casa. Nem para adulto, nem para crianças.
*Adriana Geronimo é covereadora em Fortaleza, no Ceará. É assistente social, cria da periferia de Fortaleza, cofundadora da FavelAfro, cooperativa de mulheres periféricas. Integra o Grupo Jovens em Busca de Deus (JBD), a Frente de Luta por Moradia Digna, o Campo Popular do Plano Diretor e o Fórum Popular de Segurança Pública. Está pré-candidata à Deputada Estadual do Ceará e participa da jornada formativa “Estamos Prontas”, iniciativa do Instituto Marielle Franco e movimento Mulheres Negras Decidem.
** Para construção deste artigo, foram utilizados como referiências dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF); Projeto Criança Livre de Trabalho Infantil; Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI); Organização Internacional do Trabalho (OIT).
*** Este texto é de exclusiva responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Lunetas.
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Segundo a pesquisa, a maioria das crianças em situação de trabalho infantil são meninos (66,4%) negros (66,1%). Quanto à faixa etária, são 337 mil crianças de cinco a 13 anos (21,3%); 442 mil pré-adolescentes de 14 e 15 anos (25%); e 950 mil adolescentes de 16 e 17 anos (53,7%).