O mundo conhecido antes da migração, no país de origem; o mundo ao qual estão sendo apresentadas, no país que as recebe; e os mundos que ainda descobrirão
A rotina de crianças migrantes e refugiadas no Brasil contada a partir das histórias do angolano Jacob e da venezuelana Yulianny.
Passeando em um barco a remo em um rio margeado por árvores de buriti em Winiquina, na Venezuela, é como Yulianny, 11, uma menina indígena da etnia Warao, se retrata. “Esta sou eu, no barco”. Assim como 655 outras crianças indígenas do seu país, ela se encontra no Brasil. No momento, mora provisoriamente em um abrigo em Roraima junto de outras crianças migrantes e refugiadas.
Segundo dados da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), existem hoje 8.634 pessoas venezuelanas abrigadas neste estado, sendo 20% indígenas. Como as demais crianças que chegam no norte do Brasil nessa condição atualmente, ela participa de atividades de integração coordenadas pela Unicef, na tentativa de recuperar sua antiga rotina e construir uma nova.
Um pouco diferente foi quando o angolano Jacob Cachinga, hoje um homem de 32 anos, chegou ao Brasil como refugiado, a partir de um convênio internacional entre Brasil e Angola. De acordo com o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), os angolanos ocupam o 5º lugar entre as nacionalidades que mais têm o reconhecimento de refúgio no Brasil (2021). Na época, em 1998, Jacob era uma criança – também de 11 anos. Ao desembarcar aqui, teve uma primeira experiência marcada pelo racismo em uma casa de acolhimento em Minas Gerais, mas logo pôde ser transferido para o Instituto Paranaense de Cegos (IPC), em Curitiba (PR), onde é recebido com amor até hoje. “O IPC foi a minha casa e a convivência com voluntários brasileiros e outras pessoas cegas – que também vieram de Angola refugiadas – foi fundamental para a minha adaptação.”
Com a vida estabelecida no Brasil, Jacob não se cansa de retornar às memórias para compartilhar a sua história e afirmar a sua identidade. “Eu achava que o mundo era só aquele pedacinho de terra no Moxico [província de Angola]. Que bom que eu estava enganado.”
“Há muitos mundos dentro do nosso mundo”
As memórias da infância de Jacob e as vivências atuais de Yulianny se encontram nessa reportagem, que mostra as diferenças e as semelhanças da rotina de crianças migrantes e refugiadas em relação às brasileiras. Vamos conhecer esses mundos?
Nem toda criança ouve “tá na hora de ir pra escola”, mesmo sendo – ou devendo ser – um direito em qualquer lugar do mundo. Sem poder estudar, o menino Jacob, quando tinha 11 anos, vendia sambapito (pirulito) pelas ruas de Moxico, na Angola, até que decidiu morar na rua de vez. Ele conta que, em seu país de origem, pessoas cegas, além de não poderem frequentar a escola, não podiam trabalhar formalmente, nem casar. Cego desde os dois anos de idade, consequência do sarampo que, na época, não pôde ser tratado devido às restrições de acesso à saúde que a população angolana vivia em meio a uma guerra civil, Jacob tentava viver uma vida como a de qualquer outra criança de sua idade, mas frequentemente encontrava limitações. “Quando criança, eu pensava: para que eu existo, então? Eu sou inútil! Será que existe um país em que uma criança cega estuda?”
Sim, Jacob, existe! Nas aulas de geografia, uma das favoritas de Yulianny, ela já sabe onde está o Brasil no mapa. Bem pertinho, fazendo divisa com o seu país de origem, a Venezuela. “Eu sempre gostei da escola, principalmente das tarefas de geografia. Aqui no Brasil, eu acordo, tomo café da manhã e tomo banho para ir à escola.”
Antes de cruzar o Atlântico em um avião, o menino Jacob achava que o Brasil era algum lugar de Angola. Tamanha foi sua surpresa quando percebeu que o país está em outro continente, onde se fala português brasileiro e não chócue (um dos principais dialetos da Angola), que o verão do sul do Brasil é chuvoso, e não seco como estava acostumado, e que aqui crianças cegas vão para a escola.
“Repare que, enquanto você fala, eu estou com meu corpo direcionado para você. E, por quê? Para mim, não faz diferença. Mas, eu aprendi na escola, com meus amigos que enxergavam que, se eu não faço isso, você pode achar que eu não estou prestando atenção. Já os meus amigos aprenderam que tinham que me dar o braço para corrermos juntos. Muito mais do que a grade curricular, a escola que preza pela inclusão nos permite aprender com as diferenças.“
No caso de Jacob, a adaptação era um desafio tanto pela questão cultural quanto pela sua condição física e também racial – uma vez que estava morando em uma cidade majoritariamente branca, em Curitiba (PR). É considerando estes desafios que Tomás Tancredi, oficial de proteção à criança do Unicef em Roraima, afirma que valorizar as diferenças fortalece a integração de crianças migrantes e refugiadas. “A integração precisa ser inclusiva e, em hipótese alguma, pode significar um apagamento da história e da identidade. A integração que inclui as diversidades fortalece as minorias e não o contrário, como se diz no senso comum.”
A migração na infância é uma situação que expõe as crianças a questionarem a própria identidade, na busca por se sentirem pertencentes. “Já percebi crianças indígenas com vergonha de falar ou de se identificarem como Warao. Esse é um sintoma da falta de adaptação, em que a criança não se sente pertecendo e se sente inferior à comunidade local, principalmente quando se encontra em um ambiente xenofóbico. Negar a própria identidade não deixa de ser uma tentativa desesperada de adaptação, mas que tem efeitos devastadores para o desenvolvimento de uma criança, podendo causar muito sofrimento e insegurança ao longo da vida”, diz Tancredi.
Por isso, os espaços educativos dos abrigos de migrantes e refugiados vindos da Venezuela, coordenados pelo Unicef e chamados de Super Panas, têm como missão prevenir situações como a anterior.
Sem muita dificuldade de se comunicar no novo idioma, Yulianny conta que se diverte estudando, por isso não dispensa a oportunidade de ir em mais de uma escola. “Eu vou para duas escolas. A que fica fora do abrigo e a que fica dentro. Eu gosto muito de ler, escrever e fazer as tarefas de português.”
Como explica o oficial do Unicef, “os espaços educativos funcionam como uma sustentação social e afetiva para a elaboração coletiva dessa experiência muito marcante que é migrar”. Uma das principais estratégias para isso é o ensino do português e, no caso de venezuelanos indígenas, o ensino paralelo do espanhol e, especialmente, das línguas Warao, Taurepang, Eñepa e Karìna com professores indígenas. “Esse ensino é fundamental para o bem-estar e a saúde mental das crianças por vários motivos: a língua é carregada de afeto e memórias do local de origem e a referência de professores indígenas facilita o acolhimento e a elaboração do que significa sair de uma casa”, afirma Tancredi.
Foi tentando significar esse momento de transição que Jacob e seus amigos também refugiados da Angola começaram a cantar músicas da terra natal e formaram o coral Pequenos Cantores de Angola, que depois, com o grupo adulto, veio a se chamar Vozes de Angola. “Cantar era uma forma de matar a saudade de casa. Cantávamos sobre nossas dores. Tinha uma letra que dizia: ‘Meu coração sempre chora. Minha vida sempre chora’. Outras vezes, cantávamos sobre Deus e a sua volta para acabar com o sofrimento do nosso povo. Hoje, cantamos sobre esperança”, completa.
Cheiro de manga lembra a infância de Jacob em Angola. Manga que ele pegava no pé, em qualquer lugar em Moxico. “Havia mangueiras por tudo lá e elas eram públicas. Qualquer pessoa podia pegar a fruta direto da árvore. Não era como aqui, em que as árvores ficam nos terrenos das pessoas e você não pode simplesmente pegar o fruto.”
Tantas árvores despertavam em Jacob vontade de ficar mais tempo lá no alto das copas do que embaixo delas. “Minha infância em Angola durou pouco. Eu vivia em um país machista que esperava que os meninos crescessem rápido e assumissem responsabilidades de homens adultos. Enquanto fui criança lá, deixei minha mãe muito preocupada! Ela achava que, a qualquer hora, iria cair de um galho, por eu não enxergar”.
Mas o medo não fazia parte do vocabulário de Jacob naquela época. Ele subiu em muita árvore e não caiu de nenhuma. “Eu tive medo depois de adulto”. Quando chegou ao Brasil, teve a chance de retomar a infância. “Além de voltar a subir em árvore, aqui também aprendi a jogar futebol.”
Enquanto Jacob apresenta a quadra de futebol, a qual ele e seus amigos reivindicaram para ser construída e onde jogou inúmeras partidas, ele é surpreendido por um antigo funcionário do IPC que o reconhece de longe. “Jacob! Quantos jogos nós não jogamos juntos! Perdemos várias vezes para os meninos. A bola de guizo [própria para o jogo com pessoas cegas] passava por entre nossas pernas que nem víamos – mesmo sendo videntes”, lembra o funcionário.
Da quadra de futebol para a quadra de vôlei, Yulianny conta que o esporte fortalece suas amizades. “Gosto muito de jogar vôlei e todos os meus amigos jogam também. Jogamos muito por aqui, nos divertimos e somos alegres.”
As pernas ágeis de Jacob e os braços fortes de Yulianny descobriram, fora das quadras, novos movimentos: na dança.
“Eu gostava tanto de girar, girar, girar… até cair no chão”, conta Jacob com uma gargalhada. Dançar sempre foi uma paixão e a sua condição visual nunca o impediu de viver isso. Assim, Jacob fundou dois projetos: o Dois Mundos, em que dança com sua parceira Pamela, uma mulher branca e brasileira; e o Dançar sem ver, em que ele incentiva outras pessoas cegas a desfrutarem da satisfação que a dança traz. Para Yulianny, a música e os movimentos são também um lugar seguro, que a faz sentir-se confiante. “Gosto de fazer apresentações de dança, de qualquer tipo.”
Numa viagem no tempo imaginário, como seria se o Jacob do passado, um menino de 11 anos, negro, angolano, cego, se encontrasse com a Yulianny de hoje, uma menina de 11 anos, indígena, warao. Que dança seus mundos dançariam juntos?
No fim do dia, na casa de Yulianny, em Winiquina, quase sempre tinha mandioca, moriche (buriti) e peixe fresco, pescado ao longo do dia no rio. “Minha mãe saía em um barco à remo para buscar nossa comida. Quando ela chegava, ela cozinhava para nós.” O fogo aceso, depois da partida do sol, iluminava a escuridão; enquanto o peixe assava na brasa.
Do outro lado do Atlântico e mesmo em outro século, Jacob lembra que, em sua casa, também era a mãe quem saía para garantir o alimento e depois preparava-o. “Aquilo que vocês chamam de fubá aqui no Brasil, lá em Angola, a gente chama de fúba. Minha mãe saía para vender fúba nas ruas e, com o dinheiro, comprava algum complemento para o funge, que é o nosso prato de todo dia”.
Comer é muito mais do que satisfazer uma necessidade humana. É também nas atividades em torno da cozinha que se constrói uma nova rotina, forjando o sentimento de pertencimento. Para o oficial de proteção à criança do Unicef, a alimentação é um indicador de adaptação, ainda que menos óbvio. “Já lidamos com transtornos alimentares que tinham em sua origem a recusa de aceitar um novo espaço. Quando a criança não encontra acolhimento, isso pode se manifestar no hábito alimentar.”
Todo o processo de adaptação exige aprender a se relacionar com o novo: um novo sabor, um novo hábito. Jacob conta que, em Angola, tinha a prática de comer com as mãos, sem o uso de talheres – o que aprendeu no Brasil. “Os voluntários que trabalhavam no Instituto Paranaense de Cegos eram como pais e mães para nós, nos ensinando tudo, até a comer com garfo e faca, algo que eu não fazia antes”, diz Jacob.
Como percebe o oficial do Unicef, o que se come ou o que se deixa de comer é também uma forma de expressão. “É comum que as crianças (e também adultos) usem a alimentação para falar de como estão se sentindo acolhidas e também das saudades de onde vieram.”
Com a última refeição do dia feita e se sentindo satisfeita, Yulianny diz que o seu momento favorito do dia não mudou, mesmo com a nova rotina no Brasil. “O meu momento favorito continua sendo quando eu tomo banho e coloco pijama. O que mudou é a noite. Lá onde eu vivia tinha muitos animais e, à noite, quando já não tinha luz, apareciam desenhos no céu, com estrelas e uma lua.”
É com essa mesma curiosidade infantil, que se dispõe a conhecer o novo, que Tancredi, oficial de proteção à criança do Unicef em Roraima, sugere que as famílias brasileiras e professores em escolas que acolhem migrantes e refugiados se relacionem com uma cultura que não é a sua. “Seria muito bonito se a sociedade brasileira aproveitasse a migração venezuelana para entrar em contato e conhecer mais a América Latina.” Ele ainda reitera o papel da escola nesse incentivo. “Professores podem enriquecer suas aulas com atividades criativas. Cozinhar uma arepa (massa de pão feita com milho), após um semestre de discussões sobre a revolução agrícola e como isso se deu de outra forma nas Américas, comentando sobre a importância do milho e da mandioca, pode ser uma boa ideia.”
Jacob que hoje é mestre em Bioética, com pesquisa em educação inclusiva, nos lembra que preconceito e discriminação se ensinam. A inclusão oportuniza, a partir da convivência – em especial, na escola –, o aprendizado do respeito às diferenças e a valorização delas. “Eu fui estudar com crianças brasileiras que enxergavam. Ter feito essas amizades foi muito importante para a minha adaptação. Elas me mostraram um mundo que eu não conhecia. Assim como eu mostrei para elas um mundo que elas também não conheciam.”
Nessa convergência entre histórias diferentes, o que Jacob diria a uma criança refugiada de 11 anos hoje, tal qual ele foi um dia e Yulianny é agora, é:
“Saiba que existem outros mundos”
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