Para crianças do Rio Grande do Sul que acompanham a família na lida no campo, muitas vezes sem acesso à educação, é tênue a linha entre o brincar e o trabalho
Especialistas destacam a importância da educação de crianças que vivem no campo, no Sul do Brasil, entre brincadeiras em meio à natureza e o risco do trabalho infantil.
Depois de tomar café, Felype, 6, calça as botas e vai encontrar os animais, brincar na terra, escalar uma árvore ou pescar. Entre as infâncias rurais no distrito de Capão Grande, cidade de Paraíso do Sul (RS), sua rotina é repleta de experiências por meio do brincar livre: o que importa é explorar o espaço e inventar brinquedos a partir dos elementos naturais disponíveis.
Enquanto isso, em Guardinha, interior de Restinga Seca, os irmãos Richard, 9, e Estevão, 4, se distraem com o carinho nos gatos, cachorros e na caturrita que é criada pela família no arvoredo da casa. Os meninos gostam de tomar banho de rio e pisar em poças d’água. A mãe Fabrine confessa que, “quando eles fazem trilhas, voltam para casa cheios de barro, mas bem faceiros”.
Em muitos desses lares, a infância tem “mais terra” e as vivências sensoriais têm mais valor do que a tecnologia. “Telefone é coisa de gente grande”, sentenciam os irmãos Yuri, 6, e Yudi, 4, que moram no interior de Eldorado do Sul. “O aparelho só é liberado em dias de chuva, quando fica difícil eles saírem de dentro de casa”, conta a mãe Paola.
Essas crianças que têm à sua disposição espaços para correr ao ar livre e brincar em meio à natureza são estimuladas a desenvolver a criatividade, comenta a educadora física Tailise Pritsch Pereira. “Elas resgatam a essência de ser criança, de se sujar, andar descalço, apanhar uma fruta no pé, montar as brincadeiras com o que tem disponível no ambiente”.
“Ao acompanharem de perto os processos na lida rural, as crianças se sentem pertencentes a este meio e as vivências no campo também revelam suas identidades”, comenta Aline Mesquita Corrêa, que pesquisa temas relacionados ao campo, na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Segundo a professora, “as crianças do meio rural desde muito cedo mantêm contato com a terra, com a produção de alimentos, com a pecuária e com a agricultura, constituindo suas identidades atravessadas por essas especificidades”, explica.
No Rio Grande do Sul, 983.751 pessoas vivem no campo, segundo o Censo Agropecuário 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Longe dos centros urbanos, as crianças não têm acesso à creche, e a maioria só irá ter contato com a escola quando começar a frequentar a pré-escola.
Essa realidade se repete para muitas famílias no meio rural. Entre os irmãos de Guardinha, Richard vai para a escola pela manhã, enquanto Estevão fica em casa o dia todo. Felype nunca foi à creche, mas agora tem ido à escola em um período. Segundo a mãe Jaqueline, o futuro de Felype é escolha sua, seja permanecer no campo ou sair dali e procurar outros meios de vida.
A educadora Aline reflete sobre uma proposta de Educação Infantil para as crianças do meio rural estar essencialmente atrelada à “concretude da vida desses pequenos, reconhecendo e valorizando suas experiências e vivências brincantes que são singulares deste espaço”, diz. “Uma educação descontextualizada das infâncias rurais colocaria em risco a manutenção do vínculo e o sentimento de pertencimento desses sujeitos ao território em que vivem.”
Aline ressalta ainda que as escolas precisam incorporar saberes do campo, trazendo a vivência rural para dentro das brincadeiras, de modo a propor atividades que façam sentido. “As próprias crianças protagonizam esse brincar fazendo relações com o meio rural em brincadeiras de roda misturadas com a musicalização, como a do boi da cara preta, ou ao amarrar uma cordinha a um pedaço de cabo de vassoura para transformá-lo num cavalinho”, comenta a educadora. “É comum os meninos gostarem de construir tratores, cercados… Ou ainda imaginar que colheram algo e deixaram reservado num canto por um tempo enquanto vão tratar dos bichos; depois, voltam a cuidar da colheita.”
“As infâncias rurais costumam trazer o protagonismo da vida delas para as brincadeiras”
No interior de Paraíso do Sul, Kathyussa, 10, mora junto do pai Leandro, acompanhando-o na lavoura de fumo. A menina, que frequenta a escola, diz gostar de dividir a experiência de morar no campo com os demais colegas que vivem na cidade: “Posso contar a eles como é o meu dia a dia, como eu ajudo o meu pai em casa, sobre os animais que vivem aqui, sobre a terra, as árvores”, reflete.
Para a professora Aline, “as crianças que moram no campo não são obrigadas a sonhar em ser agricultoras nem querer permanecer no meio rural, como os pais. “Mesmo que sonhe em seguir outras profissões, porque há todo um contexto que tende a fazer que se desacredite nas possibilidades do meio rural, e esse sonho deva ser respeitado e valorizado”, pontua Aline, “essa criança precisa, ao mesmo tempo, ter apoio para se compreender como agricultora e valorizar o seu contexto, pois sua permanência é fundamental para a sucessão da agricultura familiar”.
“É preciso investigar se as crianças do meio rural estão sonhando em deixar o campo para fugir dessa realidade que muitas vezes se apresenta como opressora”
“Hoje, há um incentivo para que o jovem fique no campo, para haver sucesso rural, pois a nova geração pode tornar o campo mais produtivo e atrativo ao agregar tecnologia ao seu trabalho”, comenta Ana Paula Motta Costa, advogada e professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estuda aspectos legais do trabalho infantil, especialmente da fumicultura, muito presente na região Sul. Segundo ela, o êxodo rural pode ser igualmente um prejuízo para a sociedade.
No interior de Eldorado do Sul, o contato desde pequeno com os animais ao acompanhar a lida no campo fez com que Yuri gostasse de estar ao lado dos bichos. Uma das atividades que mais aprecia é “recolher os ovos da galinha e também brincar com os cachorros”, diz o menino, enquanto dá carinho às ovelhas.
“A partir das relações que as crianças estabelecem com a terra, com os animais, com a natureza e com todas as demais possibilidades que estão atreladas a uma dimensão educativa, a criação no campo pode ser uma experiência muito rica ao combinar o espaço lúdico e a aprendizagem”, comenta Aline. “Acompanhar, de forma brincante, o trabalho de semeadura e colheita de alimentos, por exemplo, pode fortalecer o vínculo delas com o meio rural e com a produção de alimentos”, explica.
“Quando pequenas, é comum as crianças quererem seguir os passos dos pais, trabalhar na lavoura ou ajudar a mãe com os serviços domésticos em casa”, continua. Contudo, a educadora lembra que não podemos romantizar nem generalizar as infâncias rurais.
“O problema é quando este ‘acompanhar a família’ deixa de ser um laboratório de aprendizagem e se torna trabalho”
“Além do amplo espaço para brincar e construir caminhos de aprendizagem, é importante discutir os limites entre o trabalho educativo, que é quando a criança acompanha seus familiares e faz do campo um laboratório de observação e experiências lúdicas; e a exploração do trabalho infantil, que refere-se à violação do direito da criança simplesmente, e profundamente, ser criança”, ressalta.
Dados do Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostram que o trabalho infantil aumentou pela primeira vez em duas décadas e atinge um total de 160 milhões de crianças e adolescentes no mundo. No Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2016, foi identificado 1,8 milhão de casos de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. No Rio Grande do Sul, segundo o Observatório da Criança e do Adolescente, da Fundação Abrinq, foram registrados mais de 150 mil casos. Os maiores índices de trabalho infantil são registrados no interior do Estado.
Para a jornalista Bruna Ribeiro, autora do livro “Meninos malabares: retratos do trabalho infantil no Brasil”, o trabalho de crianças em propriedades familiares está relacionado muitas vezes “à desvalorização e ao não reconhecimento da importância da educação, além da dificuldade de acesso à escola, o que desencoraja essas crianças de estudar. Se a escola tem uma educação que não valoriza os saberes passados de geração em geração, essa família se sente distanciada da escola”, diz.
Para que essa família não dependa da mão de obra dos filhos, Bruna aponta a necessidade de promover um trabalho intersetorial e políticas públicas. “Precisamos diminuir desigualdades, enfrentar o racismo estrutural, acabar com a pobreza, promover uma educação integral, promover a profissionalização dos adultos e dos chefes de família, a inserção de trabalho no mercado digno e fortalecer a lei do aprendiz”, explica.
A advogada Ana Paula reforça que “algumas práticas são normais entre uma família que vive da produção rural, pois as crianças nascem e crescem se socializando no contexto da lavoura e de atividades relacionadas à casa e aos animais. Contudo, o trabalho infantil se caracteriza quando uma criança é obrigada a substituir uma mão de obra adulta, com regularidade, e quando há restrições como, por exemplo, trabalhar por determinado horário e não poder ir à escola”.
“O trabalho não é a única forma de transmitir um conhecimento”
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A pluralidade do brincar no Brasil foi documentada em “Território do brincar”. A educadora Renata Meirelles acompanhou 14 comunidades em nove Estados para investigar as brincadeiras das múltiplas infâncias: crianças em comunidades rurais, indígenas, quilombolas, no sertão, no litoral e em grandes cidades. “A brincadeira sempre se transforma e se adequa, como qualquer expressão cultural”, diz ela.