Cada criança é única e as mentiras contadas na infância podem ter várias razões para acontecer
O comportamento de mentir não é resolvido com soluções mágicas ou manuais. Cada criança é única e tem razões distintas para mentir; entender o porquê da mentira é o primeiro passo para construir relações de confiança com os pequenos.
“A Emilly falou que queria comer chocolate”, diz Pablo, 8, pedindo doces para o avô. O avô o questiona no começo, mas logo cede aos pedidos do neto. Já Emilly, 21, repreende o pedido do irmão mais novo, pois o menino contou uma mentira. “Ele sabe que se o avô comprar pra mim, vai comprar pra ele também”, comenta. Quando o caçula mente, a reação de Emilly é brigar com Pablo, mas o menino continua mentindo apesar da punição. Afinal, por que algumas crianças mentem?
Para Glysa Meneses, doutoranda em psicologia que pesquisa o tema mentir na infância, pela Universidade Federal do Ceará, “crianças mentem pelas mesmas razões que mentem os adultos, o que difere é o nível de complexidade da mentira”. As razões por que adultos mentem são inúmeras. Proteger-se, ganhar alguma vantagem ou não decepcionar alguém são alguns dos motivos mais recorrentes.
Apesar das muitas tipologias de mentiras, Glysa destaca dois tipos mais frequentes na infância: a mentira antissocial, que é contada como forma de autoproteção, aparece geralmente em crianças a partir dos dois anos. Conforme a criança cresce, também desenvolve a habilidade de contar mentiras do tipo pró-social, usadas para proteger ou ajudar outras pessoas.
“Na terceira infância há um crescimento exponencial na complexidade dessas mentiras. As crianças podem começar a mentir tão bem quanto um adulto, o que dificulta diferenciar a verdade da mentira”
Álvaro e Vinicius, ambos com 20 anos, são amigos desde pequenos. Um dos motivos que os conecta é o fato de terem vivido uma infância como meninos “mentirosos”, por medo das punições que receberiam caso a verdade viesse à tona. Quando desmentidos, Álvaro recebia punições verbais e/ou castigos; Vinicius recebia sermões acompanhados de cintadas.
Álvaro conta que os pais sempre foram pacientes, mas algumas coisas os aborreciam. Na época, era difícil para o menino compreender o que se passava com os adultos. Apesar das mentiras, nunca recebeu punições físicas. Conforme o tempo passava, foi criando mais autonomia e discernimento para compreender as consequências da mentira. “Minha mãe não gostava que eu fizesse coisas erradas, mas gostava menos ainda quando eu mentia”, conta, ressaltando que o maior medo era das broncas que recebia após mentir.
Com pais que justificavam as punições físicas através de discursos religiosos, Vinicius sustentou um medo gigante de errar, que o consumia antes mesmo de agir. As punições não adiantaram nada: o garoto começou a mentir ainda mais para evitar apanhar. “Às vezes, me enrolava tanto em uma mentira que nem sabia mais onde tinha começado”, conta. A infância punitiva de Vinicius o levou a ter receio de contar a verdade quando adulto. Aliás, o terror que as consequências podem gerar segue interferindo diretamente na relação com os pais até hoje.
Condutas agressivas, mentirosas e/ou negligentes por parte dos pais podem sim afetar a criação da criança, mas o vínculo não é sempre direto, comenta Glysa. Fatores como o convívio com outras pessoas ou a proteção nos ambientes que a criança frequenta podem perpassar essa relação.
“O comportamento de mentir é tão complexo que falar da forma como os pais criam os filhos e a maneira como as crianças percebem essa criação é muito pouco para explicar o porquê crianças mentem ou escolhem contar uma mentira”
Glysa reforça que o ponto é se existem maneiras de monitorar o comportamento dos filhos, a fim de perceber quando a mentira se torna prejudicial – seja por estar acontecendo em frequências altas demais ou por estar associada a uma série de outras condutas problemáticas -, fazendo com que o ideal seja trabalhar esses pontos com a ajuda de psicoterapia. Geralmente, mentir compulsivamente é uma consequência de outros transtornos, como transtornos de conduta, caracterizados por padrões persistentes de conduta dissocial, agressiva ou desafiante que não são condizentes com a idade da criança ou adolescente. Cada criança é única e deve ter sua situação analisada individualmente.
Não existe fórmula mágica para evitar que os pequenos mintam. Afinal, aprender a mentir faz parte do desenvolvimento infantil. Para Glysa, o primeiro passo é entender que escolher pelo comportamento do mentir está baseado nas possibilidades de consequência à frente. O ideal é trabalhar a ideia de que o comportamento de mentir acontece, mas nem sempre é legal e nem sempre deve ser utilizado.
Laura Amália, educadora no 1º ano do fundamental do Colégio São Domingos, em São Paulo, conta que geralmente as crianças mentem quando acham que serão punidas por algo que fizeram. “A infância é muito punida pelos adultos e isso reflete em suas ações, sempre movidas pelo medo.” A educadora enfatiza que as mentiras dos pequenos acontecem geralmente para driblar imprevistos e situações não planejadas, que podem fazê-las sentirem acuadas de contar o que realmente aconteceu.
Porém, nem sempre a mentira é contada para proteção de si ou dos outros. As crianças estão sempre criando e investigando; muitas vezes a mentira é um recurso para manterem um universo lúdico em seus mundinhos particulares. “O saudável da mentira, da imitação, do inventar, é quando a criança está imaginando e isso não prejudica os outros ou ela mesma”, diz.
Ao invés de tratar a mentira como algo errado, que deve ser punido, Laura comenta que reduzir as mentiras requer que a criança se sinta confortável com o adulto responsável e sugere mostrar o porquê de mentir não ser uma boa escolha.
“A verdade, por mais que às vezes pareça doída, é mais fácil de resolver”
Criar uma relação de confiança com as crianças, para Laura, é um processo que fala sobre pertencimento. “Nós excluímos a infância do mundo do adulto como se fossem mundos totalmente diferentes, que não se integram”, reflete a educadora. Seja assistindo ao mesmo desenho, frequentando sorveterias ou tendo conflitos com os colegas, adultos muitas vezes fazem a mesma coisa que os pequenos, estreitando pontes entre mundos que têm mais similaridades do que parece.
“A gente compartilha nossas vivências e muitas vezes elas ficam surpresas quando descobrem que os adultos fazem coisas iguais a elas”
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E a mitomania?
Conhecida popularmente como “compulsão por mentir”, a mitomania também é chamada de mentira patológica ou pseudologia fantástica, mas o “mentir por mentir” não é considerado um transtorno específico. Portanto, não está presente no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) ou na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), sistemas que organizam e codificam distúrbios de saúde.