Especialistas explicam as consequências das brigas domésticas na vida das crianças e de que forma os adultos podem lidar com isso sem impactar os pequenos
As brigas entre pais ou responsáveis dentro de casa impactam o desenvolvimento e a saúde mental das crianças. Como nós, adultos, podemos gerenciar esses conflitos e construir um espaço respeitoso de diálogo e expressão de sentimentos?
O mesmo ambiente que proporciona afeto, aconchego e pertencimento também pode ser responsável por um som muito comum dentro de qualquer casa: o som das discussões. Ninguém gosta, mas elas fazem parte da vida dos casais. Em meio às brigas dos pais, estão as crianças: espectadoras atentas de um mundo que é novo para elas. O que fazer para que a rotina doméstica, muitas vezes conflituosa, não afete negativamente a vida dos filhos? É possível viver sem conflito? É saudável brigar sempre ou não brigar nunca? Tem como equilibrar essa conta?
“Eu gosto de partir de uma crença de que o ser humano se constitui a partir de suas relações. Conflitos são até saudáveis, pois mostram como lidar com as diferenças”, afirma a psicoterapeuta e coordenadora do Instituto de Terapia Familiar de São Paulo, Mônica Genofre. Ela explica que quanto menor for a criança, maiores serão os impactos, pois é mais difícil para elas elaborarem o que estão sentindo.
“O excesso de brigas em casa afeta os filhos e pode levar as crianças a se tornarem inseguras, ou mesmo ter atitudes agressivas”
O psicanalista, pediatra e professor da Faculdade Santa Marcelina, Élcio Mascarenhas, esclarece que o modo de lidar com os desentendimentos é que vai dar o tom do potencial dano causado. “A gente precisa entender a diferença entre agressividade e violência. Enquanto a agressividade é uma dinâmica de forças, que nos leva em busca daquilo que nos interessa, dos nossos desejos, do que fortalece o encontro entre pessoas, a violência é caracterizada por um excesso, que rompe qualquer possibilidade de compartilhamento”, diz.
O momento atual, de pandemia e crise econômica, em que as pessoas estão estressadas e preocupadas, pode levar muitas famílias a um cenário no qual o conflito tem componentes poucos saudáveis. “A palavra captura toda essa energia livre que pode ficar absolutamente solta e destrutiva, sem sentido, justamente por não haver um espaço de diálogo, apenas um momento de descarga desses incômodos, que fazem parte das relações familiares e humanas, em geral”, explica o psicanalista. Segundo ele, é importante sempre lembrar que a criança é um espectador voraz dos adultos. “Ela imita, aprende através daquilo que observa e vai criando a sua forma de entender como se processam todas as relações que se estabelecem fora do ambiente familiar”, completa Élcio.
A terapeuta holística e massoterapeuta Juliana Gomes, de São Caetano (SP), mãe de cinco filhos – a mais nova tem 11 e o mais velho está com 20 anos -, conta que foram inúmeras as situações de conflitos em seu relacionamento anterior.
“Em um momento de cólera a gente não mede muito o que fala. Meus filhos viram muitas coisas que não precisavam ter presenciado e acabaram se sentindo culpados também”, conta.
“A pior situação que passei foi quando meu ex-marido disse para minha filha mais nova que eu estava abandonando-o. Ela veio até mim dizendo que não queria que eu o deixasse. Sentei-me com ela, conversei muito e expliquei que não era um abandono, mas que nosso relacionamento estava ruim, e que não éramos mais felizes”, lembra.
Há estudos que mostram os impactos das brigas domésticas na vida das crianças. Um deles, coordenado pelo Departamento de Ciências Psicológicas da Universidade de Vermont, publicado em 2018 no Journal of Social and Personal Relationships, fez uma análise psicológica de 99 crianças, de 9 a 11 anos, e mostrou que aquelas que viam brigas frequentes eram mais ansiosas e apresentavam sentimentos como culpa, agressividade, insegurança e dificuldade para se relacionar com outras pessoas.
“A evolução humana é feita em etapas. Ao se passar para uma etapa não se abandonam as anteriores, ao contrário, a forma com que vai se moldando o sujeito adulto é resultado de todas as experiências vividas na infância e adolescência. A questão é a qualidade dessas discussões familiares. Se há diálogo, mesmo com agressividade, isso é contido na própria dinâmica da situação. Mas se o ambiente é violento, a violência pode se tornar marca registrada da forma como esse sujeito vai se colocar no mundo”, explica o psicanalista Élcio. “O excesso de conflitos pode gerar muita insegurança ou ser repetido em relações futuras, mas, como estamos falando de seres humanos, isso não é uma regra”, complementa a psicoterapeuta Mônica.
Juliana conta que nota os impactos das brigas domésticas na vida dos filhos, principalmente do mais velho. “Vejo que meu filho de 20 anos tem vários traumas por conta do que viu e, consequentemente, viveu junto”, conta.
Conviver sem conflitos é um ideal irreal. Então, já que não é possível viver sem eles, como lidar com esses aspectos dissonantes do dia a dia de modo a não afetar negativamente as crianças?
“Se forem conflitos que tenham como sentido elaborar os problemas enfrentados, criar possibilidades de soluções, o efeito é produtivo”, sugere o psicanalista.
“Uma discussão que seja aberta e que todos possam se expressar é saudável, desde que preservadas as medidas de cuidado e proteção para com o outro, e não simplesmente um jogo de força”
A personal trainer Roberta da Rosa, mãe do Romeo, de 1 ano, moradora de Porto Alegre (RS), conta que, embora as brigas em casa sejam inevitáveis, é preciso ter cautela e perceber quando as coisas estão saindo do controle. “Na minha casa, evitamos ao máximo aumentar o tom de voz um com outro, mas já houve situações em que isso aconteceu e meu filho se mostrou bem incomodado. Quando percebemos que estamos tomando esta atitude, um de nós dos dois baixa a guarda e a briga se encerra”, diz.
O mais importante, segundo os especialistas, é justamente manter o respeito e o diálogo aberto quando ocorrerem os conflitos. “Se for possível, é melhor não brigar na frente dos filhos. Contudo, não adianta esconder as coisas, para fingir que está tudo bem. As crianças são muito perceptivas e omitir ou mentir sobre uma situação acaba sendo pior”, aconselha Mônica.
“É importante mostrar que mesmo pessoas que se gostam, se desentendem. Também é essencial legitimar a emoção da criança para que ela se fortaleça”
Outra medida fundamental é evitar normalizar comportamentos violentos.
“Os adultos não devem banalizar a violência. Se a toleramos, trazemos a informação dúbia de que tudo bem se houver excessos. Está aí um grande erro”, aponta Élcio.
Em situações de violência, vale tudo que causar dor no outro, desconforto, mal estar. Omissões, palavras, gestos que provoquem sofrimento também são situações potencialmente violentas. “Precisamos construir uma cultura de mais amor, paz e compreensão. Olhar o outro, não como um inimigo, mas como alguém que está posicionado do outro lado da situação. Esses lados contrários são apenas uma forma de olhar o que está acontecendo. Muitos conflitos perdem o sentido, pois as pessoas tentam forçar a própria verdade. Quando a gente cria um diálogo, no qual cada um pode expressar o que sente e pensa, a verdade não pertence a mim, nem ao outro, mas é construída no encontro”, detalha o psicanalista.
O convite é aproveitar a convivência com as crianças como uma forma de construir relações de mais qualidade, para que as coisas sejam ditas de modo construtivo, adequado e respeitoso e para que os pequenos sejam capazes de compreender, dentro do estado subjetivo deles, as experiências que vivenciam. “Isso possibilita construir sujeitos inteiros, preocupados, que consigam perceber o outro na sua diferença, na sua dissonância. Ninguém é melhor que ninguém, somos todos humanos procurando construir um mundo mais confortável, mais justo, mais tolerante e possível para todos nós”, resume o especialista.
Roberta lembra que o equilíbrio que consegue ter em casa deve-se, em grande parte, à própria educação que recebeu, quando criança. “Tanto eu quanto meu marido crescemos em famílias maravilhosas, que se respeitam e sempre colocaram o bem-estar dos filhos acima de qualquer coisa, então, tentamos reproduzir esse modelo na educação do nosso filho”, diz.
Juliana credita ao próprio amadurecimento a maior capacidade de lidar com os conflitos em casa. “Meus filhos moram comigo e não temos mais brigas, somente conversas. Se alguém se exalta, a gente para e conversa depois. Mesmo que eles estejam maiores, sei que brigas excessivas não são nada boas”, conta.
“Não posso mudar o que fiz eles passarem, mas posso mudar daqui para frente”
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