Queda na produtividade científica durante a pandemia expõe barreiras para permanência e ascensão de mulheres na universidade
A pandemia alterou a rotina de trabalho de cientistas no Brasil, impactando especialmente a produção das mulheres, devido ao acúmulo de funções. Gênero, raça e parentalidade são os principais fatores que impedem a progressão da carreira acadêmica.
A pesquisadora Zélia Ludwig busca nitrogênio para a manutenção do laboratório de física do Instituto de Ciências Exatas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais, mas não há quem realize o serviço. É preciso operar as máquinas e ela sabe que não é possível tocar o barco sozinha: a pandemia interrompeu pesquisas experimentais coletivas e esvaziou salas de aula. “Além disso, da noite para o dia, tivemos que nos adaptar à realidade do ensino remoto”, diz.
Zélia tenta conciliar as demandas remotas da universidade com o trabalho doméstico e o acompanhamento escolar da filha. O caso da professora não é isolado. Para quem dedica tempo integral às atividades laboratoriais ou teóricas, estar em casa traz diversas dificuldades para avançar nas pesquisas e acaba sendo uma barreira profissional.
Não há dúvidas de que a chegada da Covid-19 alterou a rotina de trabalho de cientistas no mundo todo. O estudo pioneiro “Produtividade acadêmica durante a pandemia: efeitos de gênero, raça e parentalidade”, realizado pelo movimento Parent in Science, constatou que mulheres negras (com ou sem filhos) e mulheres brancas com filhos foram os grupos cuja produtividade acadêmica foi mais afetada com a chegada do novo vírus. Segundo a mesma pesquisa, os homens (especialmente sem filhos) foram os menos prejudicados. O levantamento aconteceu entre os meses de abril e maio de 2020, considerando 15 mil cientistas no Brasil, entre discentes de pós-graduação, pós-doutorandos e docentes/pesquisadores.
Para a coordenadora do Parent in Science, Fernanda Staniscuaski, o motivo de muitas mães não se sentirem pertencentes ao ambiente acadêmico é um problema de ordem estrutural (a falta de apoio institucional e governamental) e não individual, que vai além da pandemia. “Esta pressão em atingirmos um ideal desenhado para um tipo muito específico de cientista (que tem em casa alguém cuidando de todos os outros aspectos da sua vida), mas que é cobrado igualmente de todos e todas, acaba muitas vezes com o desejo de muitas pessoas em seguirem uma carreira na ciência.”
Dados do Censo da Educação Superior de 2018, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostram que as mulheres são maioria no ensino superior, representando 57% do total de matriculados no país. Detentoras da maior quantidade de bolsas de mestrado e doutorado, também são elas que produzem 72% das pesquisas, de acordo com a publicação Desigualdades de gênero na produção científica ibero-americana, coordenada pela Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI).
Apesar do índice de escolaridade, as mulheres têm menos chances de acessarem cargos e permanecerem no comando, mesmo que tenham currículos semelhantes ou melhores que seus concorrentes. Além disso, elas ganham em média 20,5% menos que os homens, conforme informações do IBGE, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019 (PNAD Contínua).
Em tese, a vida acadêmica dispõe de algumas vantagens em relação a outros empregos, já que a carreira pública não permite discrepâncias salariais por gênero e ainda pode oferecer estabilidade após admissão. Ao mesmo tempo, para entrar no jogo dos sistemas de promoções é preciso seguir os critérios de produtividade impostos por agências de avaliação e financiamento científico, como os da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Isso significa que quem produz e publica mais artigos em revistas científicas com maior índice de impacto ganha mais recursos para desenvolver suas pesquisas e tem mais chances de receber prêmios de distinção. Além disso, é preciso que professores mantenham as atividades de ensino, pesquisa e extensão na universidade.
Quem explica o paradigma produtivista é a doutora em Ciência e em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ligia Moreiras, produtora do site Cientista que virou mãe. “Para se manter como grande pesquisadora, você não trabalha só oito horas diárias, você faz pesquisa, dá aulas, coordena atividades de extensão, acumulando vários turnos”, relata.
Quando uma mulher decide ter filhos, torna-se praticamente impossível concluir essa jornada, experiência que Lígia viveu durante a pós-graduação, com o nascimento de sua filha Clara.
“Fiz um doutorado com tempo exclusivo dedicado à produção científica e outro sendo mãe, a diferença é brutal”, afirma.
Apesar da compreensão por parte do orientador e do departamento em questão, foram cinco anos dormindo quatro horas por noite, aliando entrevistas e compilação de dados aos cuidados do bebê.
Hoje, já é possível para as mulheres incluírem na plataforma Lattes – sistema virtual de currículos acadêmicos – o registro do período em que se tornaram mães. De acordo com Lígia Moreiras, essa é uma ferramenta que ajuda a justificar a desaceleração na produção durante determinado tempo e evitar que essa “lacuna” as prejudique em concursos de docência, em relação a candidatos homens. “Lutar por licença parental, que já existe em outros países, ajudaria muito a reduzir as desigualdades na ciência”, defende. Além disso, segundo ela, outras ações necessárias seriam a ampliação de bolsas, acesso a creches e o direito de levar crianças para as salas de aulas, quando necessário.
“Se considerarmos que o cuidado é uma atividade não-remunerada, invisibilizada, familiarizada e feminilizada, entendemos a sua desvalorização também em termos mercadológicos”, afirma a advogada de família, professora e doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Lígia Ziggiotti de Oliveira. Para ela, a divisão artificial entre razão e emoção – associadas, respectivamente, ao campo intelectual e ao campo do cuidado – impacta percepções de papéis sociais, o que explica, por exemplo, a predominância de professoras na educação infantil e de professores no nível denominado superior.
Nesta falsa polarização, segundo ela, as atividades relacionadas às crianças são vistas socialmente como menos complexas, comparadas ao ambiente acadêmico, ligado ao aspecto racional e historicamente atribuído aos homens. Quando mulheres passam a ocupar espaços na ciência, as funções se acumulam, mas a lógica não se inverte. Por um lado, há uma expectativa de profissionalização e sucesso na carreira e, por outro, a manutenção da responsabilização social em relação aos filhos e ao trabalho doméstico.
A hierarquia acaba se refletindo também nos espaços de tomada de decisão no mundo acadêmico, com maior visibilidade a ideias, imagens e atuação dos homens. “Basta observar a ementa de qualquer disciplina e comparar o número de autores e de autoras de leitura obrigatória pela turma”, observa. Ela ainda chama atenção para o fato de ser muito comum, em órgãos colegiados da universidade, que as mulheres sejam silenciadas, podendo ser vítimas de assédio moral, fatores que contribuem para o desestímulo na profissão.
Além das questões de gênero e maternidade, o imaginário social relacionado à palavra “cientista” também é distante da diversidade étnico-racial e tem início na educação básica, com disparidades nas taxas de escolaridade entre crianças brancas e negras. Para mudar esse cenário, a professora Zélia Ludwig passou a se dedicar à proliferação de ideias e ações capazes de ampliar o acesso à universidade. Entre elas, o projeto de extensão Ciência sem Fronteiras para a Redução de Desigualdades, que reúne diversos setores da UFJF para a melhoria das condições de vida de jovens que vivem em comunidades pobres.
“Luto pela ciência, especialmente para formar jovens esclarecidos que não reproduzam o machismo e o racismo”
Em 2018, pela primeira vez no país, negros foram maioria no ensino superior, somando 50,3%, conforme aponta o Censo da Educação Superior de 2018. Apesar disso, o número de docentes não cresceu na mesma proporção. Ela questiona:
“Quantos editais levam em consideração questões de gênero, raça e parentalidade durante processos seletivos?”
A pesquisadora enfrentou inúmeras situações de racismo, dentro e fora da universidade, e acredita que apenas investindo em políticas de estímulo e permanência – considerando o cruzamento desses fatores sociais – será possível enfrentar o cenário de sub-representação feminina persistente no mundo da ciência.
“Empoderar é deixar com que contemos nossas histórias”
Repovoar a ciência e seu imaginário
Em 2018, a historiadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Giovana Xavier, publicou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis” (2017), com o objetivo de dar visibilidade a pesquisadoras negras atuais no Brasil. O trabalho reuniu 120 cientistas negras, divididas por áreas do conhecimento e por eixos temáticos de pesquisa.
*Colaborou com esta reportagem Júlia de Miranda
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Enquanto 56,4% das mulheres sem filhos têm conseguido submeter artigos científicos já planejados para publicação, o índice é de 76% para os homens. Já para as mães, a porcentagem cai para 47,4% contra 65,3% dos pais. A idade dos filhos também é um fator que interfere na produtividade, conforme demonstra o estudo: somente 28,8% das pesquisadoras com filhos entre um e seis anos – idade de maior impacto – têm conseguido manter prazos de submissão, enquanto esse índice é de 52,4% entre os homens com filhos da mesma idade.