Uma história de mãe, filha e palavras

No isolamento domiciliar, os livros tornam-se aliados para caminhar entre palavras, descobrir conexões entre texto e contexto, de nos vincularmos uma à outra

Mariana Rosa Publicado em 30.09.2020
História de mãe, filha e palavras: em um fundo amarelo, uma menina branca de cabelos loiros e flores na cabeça, com síndrome de Down, está segurando um livro de capa amarela com um coração desenhado na capa. Ela segura o livro cobrindo a sua boca e olha para baixo.
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Resumo

Mariana Rosa conta como o universo da leitura abriu novas formas de criação de vínculos com a filha, nesse momento de isolamento domiciliar. ‘A leitura com minha filha me entregou essa palavra: mediadora. Para mim, é responsabilidade. Para ela, possibilidade’.

Há mais de seis meses, estou em casa, junto com minha família, num gesto afirmativo de cuidado conosco e com todas as pessoas em meio à pandemia. Alguns privilégios costuram um dia no outro, e esticam o fio ao máximo nesse país sem perspectivas. Temos sustento, temos comida, temos afeto, temos proteção. E ainda assim, haja fôlego!

As notícias que irrompem no Brasil, somadas às decisões que precisam ser tomadas dentro de casa, cumprem o papel de criar alternâncias entre o que está posto, o que já foi e o que virá. Foi em torno de uma dessas necessidades impostas que o relacionamento entre escola e minha filha foi interrompido.

Diante da impossibilidade de sustentar as delicadezas do laço da primeira infância, que carece de braços, de presença, de corpo que seja anteparo, a comunidade escolar deixou de ser seu lugar de pertença. Não há mundo virtual que dê conta disso. Penso na peregrinação que realizei, três anos atrás, para viabilizar aquilo que deveria ser direito inquestionável: a matrícula na escola. Ouvi seis negativas. Não. Não. Não. Não. Não. Não. 

Uma lembrança que evidencia que o isolamento social está à nossa porta há mais tempo, mas como uma decisão que se tranca pelo lado de fora.

Agora, minha filha e eu nos emaranhamos em distintos sentimentos. Ela, pela saudade das professoras, dos colegas, do quintal, dos bichos, das árvores, do aprender junto com todos, do fuzuê em torno de sua cadeira de rodas quando chegava sonolenta pela manhã. Eu, pela angústia, a apreensão, a solidão. Ela, cheia de expectativas, de curiosidade, de interesse pelo mundo. Eu, despalavrada, catando nomes que possam me ajudar a dizer daquilo que ainda temos por viver juntas, mas que não sei. Nós duas precisando ser alfabetizadas. Como posso guiá-la por um caminho que desconheço?

Assumo minha ignorância, tento ser humilde. Peço ajuda a especialistas, pesquiso e, sobretudo, coloco reparo nela, na minha filha. Ela vai me ensinar enquanto aprende; eu vou aprender enquanto ensino. É com essa certeza única, mas potente, que abrimos os livros, nossos aliados. Não se trata apenas de caminhar entre as palavras. Vamos reescrever o que estamos lendo, descobrir ou inventar conexões entre texto e contexto, vincular um e outro, vincularmo-nos uma à outra, ainda mais.

Na história, a Chapeuzinho amarelo está amarela de medo, assim como eu, mas minha filha indica a direção oposta: quer dormir sozinha. O outro livro tem um cachorro que se chama Pum porque não gosta de ficar preso; penso em introduzir uma conversa escatológica, mas ela me diz que quer um cachorro. As decisões de minha filha vão ali nos livros, maturar, para depois saltar com vida própria no enredo que é seu. Ela me ensina a perguntar antes de inferir, eu a apoio para que se expresse, se manifeste, sem se diminuir.  

Nesse princípio de uma história entre filha-e-mãe-e-palavras, cumpre a mim não obstruir o trânsito entre sua competência e a aprendizagem.

Mediar é uma engrenagem delicada que se coloca a serviço do encontro. É uma passagem, um fluxo que se dá junto, mãos dadas, nunca “entre” nem “diante”. Mediar é uma aposta, uma entrega que se efetiva na paridade. A leitura com minha filha me entregou essa palavra: mediadora. Para mim, é responsabilidade. Para ela, possibilidade.

Ela costuma me observar nesses momentos. Interpela meus olhos com os seus, empurra minha mão com suas pernas, enlaça seu balbucio na minha voz. Encanta-me como ela é capaz de usar o corpo todo para sustentar seu interesse nas alturas. Como ela é capaz de fazer associações entre sílabas para me apresentar novas palavras. Como ela é capaz de capturar os sons e refazer a história, com o acréscimo do seu sorriso. 

Encanta-me como ela é capaz, afinal.

Acredito que isso esteja estampado na minha face. Quando ela me fita, percebe refletidas todas as oportunidades de realização. Tenho semblante de entusiasmo, compromisso, persistência, esperança, porque ela inspira a alegria das descobertas. Nossa aliança é para que ela saiba que pode, que quer, que vai, que é, enquanto nossos aprendizados se fazem absolutamente interdependentes, feito a ética africana: eu sou, porque nós somos.

Parece que produzimos algo bonito em tempos de exceção, porque a vida não é mesmo dada a cabimentos. É justamente porque temos vivido com intensidade essa dança entre mãe e filha, aprendizes de outras palavras, que quero acreditar que essa experiência vai se estender tão logo quanto possível, para o chão da escola, o braço do colega, o gesto da professora. Sem titubeio.

O mundo que criamos aqui, entre nós e os livros, é bom, sim. É bom porque é alavanca para outras conquistas, porque nos encoraja na busca. Agora, minha filha conta sete anos – hum hum hum hum hum hum hum. Assim, murmurando sete vezes. Sua conta soma mais do que as seis negativas que se impuseram anos atrás, seu silêncio participa como nunca. E sua presença saberá se impor, sem recuo, a quem duvidar de que ela é capaz.

Hoje, sabemos com quantas palavras se faz um novo tempo.

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