Crianças que vivem em situação de rua, que dependem da alimentação escolar ou que sofrem agressões em casa são as mais invisibilizadas pelo noticiário
Viviana Santiago reflete como a mídia não retrata todas as crianças que estão vivendo a pandemia no Brasil. Crianças em situação de rua, que dependem da alimentação da escola ou aquelas que sofrem violência em casa são as mais afetadas pela pandemia.
Desde a chegada da pandemia da Covid-19 e o início das medidas de isolamento social adotadas para barrar o avanço do novo coronavírus, os noticiários têm se dedicado à essa cobertura. Em quase todos, uma reportagem já ficou comum: mostrar a vida das crianças na pandemia.
Essas reportagens me dão a sensação de que não vejo todas as crianças refletidas ali. Hoje, percebi o porquê. A maioria mostra crianças que partilham alguns marcadores sociais: são brancas, de classe média, trancadas em seus apartamentos com suas mães e seus pais que fazem home office e enfrentam dificuldade em conciliar trabalho, cuidados com a casa, atenção e afeto, além de terem assumido a responsabilidade de liderar a escolarização. É um desafio enorme para os pais, mas também para as crianças que, de um momento para o outro, perderam tantos aspectos estruturantes de suas vidas.
Então, me pergunto: como vivem todas as crianças, aquelas outras sobre as quais não se produzem reportagens, mas sabemos que existem? Será que o maior desafio que estas crianças lidam é tentar jogar futebol na sala de um apartamento?
De acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda), existem mais de cem mil brasileiros em situação de rua. Dessas, cerca de 23 mil são crianças e adolescentes, sendo que 23% dormem em calçadas, viadutos, praças e rodoviárias; 2,9% dormem temporariamente em instituições de acolhimento; e 14,8% circulam entre esses espaços.
Se as reportagens falam de ‘ter que ficar em casa’, existem crianças que não têm casa.
A mídia aponta os problemas das famílias em acompanhar tarefas escolares on-line, sendo que 38,9% das crianças entre seis e 11 anos que estão em situação de rua não frequentam a escola – este índice aumenta para 58,9%, na faixa etária de 12 a 17 anos. Por que não sabemos como essas meninas e meninos estão vivendo a pandemia?
Além de discutir o cotidiano de mães e pais em situação de home office e a maneira como isso impacta a relação familiar, devemos falar também das mais de 58 milhões de pessoas que perderam metade ou mais de suas rendas e dos 32 milhões de trabalhadores que podem ficar sem renda e sem o auxílio emergencial durante a pandemia. Com a suspensão das aulas e perda financeira das famílias, as crianças e adolescentes que dependiam quase que exclusivamente da alimentação escolar hoje passam fome.
Quem tem casa e comida ainda corre riscos. Nem sempre a casa é um lugar protetor.
A cada quatro horas uma menina com menos de 13 anos sofre violência sexual no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Todos os dias, são notificadas, em média, 233 agressões físicas, psicológicas e tortura contra crianças e adolescentes de até 19 anos – boa parte tem como autores pessoas do círculo familiar e de convivência das vítimas.
É preciso mudar a perspectiva: disputar essa narrativa homogênea que quer nos fazer acreditar que existe uma infância única. As enfermidades não são instituições democráticas, elas afetam de maneira diferenciada porque já existe um contexto de desigualdade implantado. Se analisarmos questões de raça, classe e gênero, sabemos que a população pobre, negra, mulheres e meninas são os grupos em situação de maior vulnerabilidade no Brasil. Crianças nas periferias e nas regiões mais pobres estão com fome e pedindo comida. Penso nas crianças imigrantes e refugiadas cujas famílias vivem em extrema pobreza e enfrentam a xenofobia de quem acredita que aqui não é seu lugar, com risco do trabalho infantil e da exploração sexual.
Cada criança conta. Toda criança conta. Não se trata de estabelecer uma competição para ver quem sofre mais, mas dizer que nenhuma criança deve sofrer. Todas as crianças merecem viver bem e têm o direito de viver livre de violências.
Mudar a narrativa sobre a situação dessas crianças é nomear as questões. O que não pode ser nomeado também não pode ser enfrentado. Nomear é o primeiro passo para gerar sensibilização social, impactar as respostas à pandemia e de fato fazer com que Estado, família e sociedade possam reposicionar as crianças num lugar onde muitas nunca estiveram, e do qual outras recentemente foram retiradas: o lugar de prioridade absoluta.
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