Crianças e adolescentes correspondem a mais de 80% dos casos de estupros registrados no país. Em média, são 45 mil vítimas desse crime a cada ano, segundo o Unicef e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No ano passado, 12 mil meninas entre 8 e 14 anos engravidaram no Brasil.
Apesar disso, o Projeto de Lei 1904/2024, chamado de PL da Gravidez Infantil, aprovado em caráter de urgência na Câmara dos Deputados, quer negar o direito a interromper a gravidez em caso de estupro. Ao tentar equiparar o aborto ao crime de homicídio, o PL prevê que a pena para a vítima que realizar o aborto seja de seis a 20 anos de prisão. O que pode ser maior do que a pena de 10 anos prevista para o agressor.
Assim, diante das falhas das redes de proteção, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) afirmou, em nota, que o PL 1904 representa um “retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aos direitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual”.
“[O texto] impõe sofrimento, tortura e coloca em risco a saúde, a integridade física e mental, e a dignidade de milhares de crianças e adolescentes que são cotidianamente violentadas sexualmente em nosso país”
Por que meninas de até 14 anos serão as mais afetadas pelo PL antiaborto?
Segundo profissionais da saúde que atendem meninas vítimas de estupro, apenas 4% têm acesso ao aborto legal. A maioria busca os serviços após 22 semanas. “Muitas vezes elas nem sabem o que é gravidez. Elas são violentadas por pessoas em quem elas confiam e não entendem o que está acontecendo”, afirma o ginecologista Olímpio Moraes, diretor médico da Universidade de Pernambuco, em entrevista ao jornal O Globo. “Como elas não têm ciclo menstrual regular, não conhecem os sintomas.” Assim, a família costuma descobrir “a gravidez quando a barriga aparece, com quatro ou cinco meses”, diz o médico.
Outra questão é que apenas três hospitais no país inteiro realizam o procedimento de aborto legal acima de 22 semanas. Ou seja, todo o cenário aponta para a privação desse direito às meninas grávidas de seus agressores.
Situação expõe ainda mais as vítimas
Negar a possibilidade de interromper uma gestação fruto de violência expõe ainda mais a vítima. Afinal, ela seria obrigada a ter um filho com seu agressor e retornar para casa, onde, na maioria das vezes, acontecem os abusos. É o que diz a cartilha da campanha Maio Laranja: 72% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes ocorrem na casa da vítima ou do agressor. Os crimes geralmente envolvem alguém da família, como o pai, padrasto, tio ou avô, além de pessoas próximas e que frequentam a casa dessas crianças.
O Disque Direitos Humanos (Disque 100) recebeu, entre janeiro e maio deste ano, 7.887 denúncias de estupro de vulnerável. A média é de 60 denúncias por dia, ou dois casos a cada hora.
Como lembra Ana Cifali, coordenadora jurídica do Instituto Alana e conselheira do Conanda, as principais vítimas são meninas em condições de vulnerabilidade social. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2022, 56% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável eram meninas pretas ou pardas. A desigualdade racial é percebida também no número de adolescentes grávidas por ano. Segundo o DATASUS, 70% delas são negras.
Como garantir o direito das meninas?
Contrárias a esse projeto de lei, diversas manifestações pedem para que o Congresso amplie a proteção das meninas vítimas de violência sexual. Isso porque “o PL adiciona mais uma camada de confusão sobre o direito ao aborto legal, seguro e humanizado para meninas vítimas de estupro”, diz Ana Cifali. A situação pode levar a uma insegurança jurídica e mesmo indefinição para que os profissionais da saúde saibam qual o procedimento correto nesses casos.
Para ela, é importante a sociedade civil ficar atenta. Do mesmo modo que precisa se manifestar, porque, “depois dessa primeira aprovação, o projeto pode chegar no plenário sem precisar da aprovação de outras comissões”. Isso deixa o caminho mais curto para que a lei entre em vigor após a sanção do presidente da república. Porém, a questão ainda está “nas mãos do presidente da Câmara, Arthur Lira”, explica Cifali.
“Assim, podemos, não só barrar os processos, mas também avançar e realmente garantir melhores direitos para as crianças”
O movimento “Criança não é mãe”, liderado pela organização “Nossas”, reuniu mais de 63 mil assinaturas para pressionar o presidente da Câmara, Arthur Lira, e outros deputados sobre os riscos dessa aprovação. Enquanto isso, coletivos feministas e organizações de proteção às crianças e adolescentes foram às ruas em várias capitais em protesto. Também é possível participar de enquetes como a do site da Câmara dos Deputados, por exemplo.
Desde 1940, a lei brasileira garante que, em caso de estupro, risco de vida à gestante ou anencefalia fetal, meninas e mulheres terão direito ao aborto legal e seguro a qualquer tempo da gestação. Se o PL for aprovado, o aborto legal só será permitido até a 22ª semana de gestação, mesmo em casos de estupro. Além de violar a Constituição Federal, o PL também vai contra direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e outras normas internacionais.