“Até hoje não consigo entender por que meu pai fez isso. Ele sempre dizia que amava a gente. Tive muito medo quando eu vi aquilo tudo. Mesmo depois de fazer isso, ele ameaçou a mim, meus irmãos e minha família”, essas palavras são de Gabriel*, 11, que viu sua mãe morrer em Campo Grande (MS), numa madrugada de sexta-feira, em abril de 2016. À época, ele tinha sete anos e estava se preparando para dormir com seus dois irmãos quando o pai invadiu o local e começou uma discussão com a mãe, pois não aceitava o fim do relacionamento. O homem esfaqueou a mulher e fugiu do local em uma bicicleta. O socorro foi chamado, mas a mãe de Gabriel não resistiu. Ela morreu aos 26 anos.
“E agora, nunca mais vou ver minha mãe? Com quem vou morar? E os meus irmãos vão ficar perto de mim? Para onde será que a polícia vai nos levar?”, essas eram as indagações que dominavam a cabeça do menino.
Gabriel e os dois irmãos ficaram com a tia materna. O autor do crime foi julgado no ano seguinte e condenado a 16 anos de prisão em regime fechado por feminicídio. Após o ocorrido, eles nunca mais o viram.
O menino afirma ter vários pesadelos. “Em muitas noites, eu sonho com ela. Em alguns sonhos, estamos felizes; em outros, eu a vejo no chão, caída”, conta.
“Sinto saudades e fico muito triste quando é Dia das Mães. Na escola, é difícil, porque meus colegas e professores ainda perguntam sobre ela”
O caso de Gabriel é um dos milhares que acontecem em nosso país. De acordo com os registros da Delegacia Geral de Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, no ano de 2016, quando sua mãe morreu, outras 33 mulheres foram mortas por seus companheiros ou ex-companheiros.
Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, em 2020, foram 1.350 casos de feminicídio no Brasil, um a cada seis horas e meia. Outro dado importante é que, nesse mesmo ano, a vítima era mãe em 80% dos lares brasileiros onde um homem tentou matar uma mulher – provavelmente, os filhos assistiram e conviveram com as agressões.
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul foram os estados com mais casos de feminicídio no país. MT teve taxa de 3,6 e MS ficou com o índice de 3 casos a cada 100 mil mulheres. Segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), só em Mato Grosso do Sul foram registrados 40 feminicídios em 2020. Esse número representa um aumento de 33% em relação ao ano anterior, quando 30 mulheres morreram.
O estado é considerado modelo na investigação de crimes contra a mulher e, em 2015, recebeu a primeira Casa da Mulher Brasileira (CMB) do país. No local, são integrados diversos serviços especializados para atendimento à mulher. O espaço também acolhe as crianças filhas das vítimas, durante o tempo em que as mulheres estiverem recebendo atendimento.
Em 2018, o Governo do Estado do Mato Grosso do Sul instituiu o 1º de junho como Dia Estadual de Combate ao Feminicídio, quando ocorreu o primeiro caso de feminicídio registrado no estado após a vigência da Lei 13.104/2015, que prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.
Um ciclo de violências
O feminicídio é o ato final de um ciclo constante de violência doméstica. Muitas vezes, as mulheres que vivem esse tipo de violência, por dependência ou por medo de que seus filhos fiquem órfãos, não buscam ajuda e sofrem caladas dentro de casa. Mas as crianças podem sofrer prejuízos em seu desenvolvimento, é o que explica Larissa Abdo Corrêa, psicóloga especialista em Garantia dos Direitos e Política de Cuidados à Criança e ao Adolescente.
“Essas crianças são vítimas invisíveis da violência doméstica. Os filhos que presenciam as inúmeras violências praticadas pelo agressor podem desenvolver traumas ao longo do tempo com sintomas de depressão, ansiedade, síndrome do pânico, dependência química, problemas de relacionamento. Eles também correm risco de ter prejuízos cognitivos, como distúrbios na aprendizagem. O baixo rendimento escolar pode desencadear baixa autoestima e perda do interesse pelos estudos”, observa.
Outro impacto que ocorre em consequência da vivência constante com a violência é a naturalidade com que esse comportamento é absorvido pela criança.
“Experimentos realizados por Albert Bandura, para testar a Teoria da Aprendizagem Social, demonstraram que um grupo de crianças exposto à violência tendia a repetir o comportamento violento em suas brincadeiras. Os estudos mostram que 67% dos agressores viveram em lares violentos”, explica.
“O estresse psicológico com a situação pode fazer com que essa criança venha a repetir ou aceitar ser vítima de relações abusivas no futuro”
Crianças não sofrem exclusivamente com o ato de violência doméstica. Elas também sofrem quando os pais se separam em razão de uma violência porque, em geral, elas acreditam que o papai e a mamãe deveriam ficar sempre juntos.
Carmen*, 42, conseguiu se libertar de um relacionamento abusivo. Ela foi atendida pela Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, que fica dentro da CMB. Hoje, ela mora com os três filhos, sua mãe e um tio materno. O medo ainda a acompanha, pois o contato com o agressor é constante, já que eles têm um filho de quatro anos em comum.
“Sofri agressão [verbal e física] por sete meses. Quando eu engravidei tudo piorou, ele chegou a dar um soco em minha barriga, mas isso não afetou o desenvolvimento do bebê. Até tentei voltar com ele porque pensei em meu filho, mas tudo sempre terminava em boletim de ocorrência”, lamenta.
Ela conta que a decisão de dar um basta no relacionamento aconteceu quando encontrou o pai tentando sufocar o filho, à época com oito meses.
“Eu me lembro da minha mãe apanhando do meu pai e isso me traz traumas até hoje. Não queria o mesmo para o meu filho”
“Tenho uma filha de 25 anos [de outro relacionamento] com deficiência intelectual. Quando ela viu o meu ex-marido me agredindo, pegou uma faca de cozinha e gritou com ele. Tudo isso me fez decidir separar”, relata.
Após sair de casa, Carmen começou a travar uma batalha judicial contra o ex-marido, que queria de todo jeito ver o filho, mas ela tinha medo do que ele pudesse fazer.
“O juiz decidiu que a avó paterna buscaria a criança e, na casa dela, o pai teria o convívio. Mas, com a pandemia, tudo ficou difícil. Quando acontecem as visitas, ele fica muito bravo com meu filho, briga por qualquer coisa e eu tenho medo de que ele tente agredi-lo”, complementa.
Ela diz que o menino não pergunta do pai, mas sente falta de uma figura paterna. Ele encontrou essa figura no padrasto de Carmen. “O vovô fala de carros e brinca comigo. Ele é muito legal”, conta.
Para a psicóloga Larissa, a criança precisa de amparo e apoio após um processo de separação dos pais, pois esse momento pode ser traumático quando não é bem resolvido e permeado por conflitos familiares. Segundo ela, lares conflituosos refletem diretamente no desenvolvimento físico, emocional e social da criança, com o surgimento de sintomas depressivos, medo, ansiedade, isolamento e insônia.
Acolhimento às mulheres vítimas de violência
Dentro da CMB, funciona o Programa Mulher Segura (Promuse), criado em 2018 e gerido pela Polícia Militar, responsável pelo monitoramento e pela fiscalização de medidas protetivas e pelo apoio às vítimas e seus dependentes, inclusive levando-as a outras cidades e estados. Segundo Gizele Guedes Viana, coordenadora do Promuse e sargento da PM, o programa está presente em 20 cidades de Mato Grosso do Sul e atende sete mil medidas protetivas, sendo quatro mil apenas na capital.
A própria sargento também foi vítima de violência doméstica. Ela conta que seus filhos, quando pequenos, acompanharam tudo de perto e hoje sofrem as consequências.
“Meus filhos, que já são adultos, carregam até hoje as marcas do que passamos. O mais velho levou isso como exemplo do que não fazer com nenhuma pessoa. Ele é completamente contra abuso e violência. Já o mais novo sente uma revolta muito grande por tudo o que ele passou, tem dificuldade em se relacionar, é muito desconfiado”, conclui.
Larissa vê com preocupação o alto índice de violência contra a mulher no estado. “Um dos motivos do número crescente de violência intrafamiliar e feminicídio é o fato de nosso estado possuir raízes culturais profundas do machismo. As reproduções ideológicas machistas acabam por promover uma naturalização da situação de submissão e violação de direitos às quais as mulheres passam diariamente”, explica a psicóloga.
“A violência de gênero é uma violência histórica e estrutural, que deve ser vista não somente como uma questão de justiça e segurança, mas também como uma questão de saúde pública, educação e, principalmente, cidadania”
A falta de apoio às crianças
A sargento Gizele ressalta que os dependentes de mulheres atendidas pelo Promuse têm uma rede de apoio para facilitar a continuação da vida, seja com a transferência escolar ou abrigo temporário para que fiquem com a mãe até que as questões burocráticas sejam resolvidas. Mas frisa que o foco está sempre na mulher. Não existe um setor específico para atendimento à criança, seja psicológico ou psiquiátrico.
Fernanda Félix, titular da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA), destaca que a criança que vivencia a violência doméstica dentro de casa, mas que não é vítima, não recebe atendimento pela delegacia. “A nossa legislação não prevê crime quando uma criança presencia o pai batendo na mãe. Para ser atendida na DEPCA, o crime precisa constar no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, complementa.
A conselheira tutelar da área norte de Campo Grande, Vânia Nogueira, esclarece que o Conselho Tutelar atende crianças que convivem com esse tipo de violência, mas que esse acompanhamento só é realizado quando há uma denúncia e o fato é constatado.
“Nós prestamos atendimento quando verificamos que a criança está sendo afetada com a violência doméstica, mesmo não sendo vítima, e solicitamos apoio das secretarias municipais de assistência social e de saúde. Também é realizado um acompanhamento com reuniões e sessões com psicólogos e assistentes sociais. Já as crianças que ficam órfãs quase sempre são acolhidas por um familiar. Caso não tenha nenhum, nós entramos em contato com o Judiciário e é ele quem decide o atendimento que a criança irá receber”, enfatiza.
A conselheira cita algumas situações que já presenciou. “Eu acompanhei crianças que vivenciam essa violência e, mesmo assim, querem o pai e a mãe juntos porque as agressões físicas são somente contra a mulher – e a criança ainda não entende os outros tipos de violência. Já vi também adolescente presenciar o pai bater na mãe e começar a agredi-la também, pois a situação se torna normal”, relata.
Um país que não cuida dos órfãos do feminicídio
A psicóloga Larissa afirma que, no país, não existe uma base de dados e nenhuma política pública para os órfãos do feminicídio.
“Na maioria das vezes, as crianças ‘não são vistas’ pela rede de atendimento. Já vi casos em que a rede de proteção encerra o atendimento quando a criança é encaminhada para algum familiar. Essas crianças precisam de uma abordagem diferenciada, sistemática e estruturada. Ainda não há um fluxo de atendimento oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS)”, relata.
“O Brasil tem como característica principal o ‘punitivismo’, que considera como suficiente punir o agressor. O Estado precisa se responsabilizar em defender e garantir os direitos da criança e do adolescente”
Ela avalia que não é fácil para uma criança esse processo de ruptura e separação, pois muitos presenciam a mãe sofrendo a violência e até mesmo o feminicídio.
“A criança vivencia o sentimento de vulnerabilidade, desproteção e hostilidade. Ela perde a mãe e fica sem a figura paterna, pois quase sempre o pai é preso. Não podemos deixar de responsabilizar o Estado pelas falhas devido à falta de políticas públicas voltadas ao amparo, acolhimento e intervenções precoces às crianças órfãs em decorrência do feminicídio”, argumenta a psicóloga.
Larissa ainda ressalta que é preciso proporcionar caminhos para reparar os danos. “Hoje, em Mato Grosso do Sul, não há uma política pública específica para o atendimento a essas crianças ou adolescentes. É necessário identificar onde estão, suas demandas e características, garantia de uma rede (seja familiar ou não) que irá acolhê-la e a adequação dos direitos já estabelecidos pelo ECA”, finaliza.
Gabriel, o garoto que perdeu a mãe aos sete anos, não teve acompanhamento psicológico, precisando enfrentar a situação apenas com o apoio dos familiares.
“Eu precisava ser forte porque tenho dois irmãos mais novos. Fico abalado quando eles perguntam onde está o papai e a mamãe. É complicado passar por tudo isso”, completa.
Histórias como estas também fazem parte da vida desta autora. Perdi minha mãe aos 15 anos, vítima de feminicídio. Hoje, grávida do Vincenzo, pretendo ensiná-lo a lutar contra qualquer tipo de violência.
* Nomes fictícios para proteger a identidade das fontes.
Ligue 180 para denunciar casos de violência contra a mulher.
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