Somos todos inventores de novas palavras de amor

Os filhos nos chamam para a dança da invenção das melhores palavras

Alexandre Coimbra Amaral Publicado em 07.06.2018
Homem e menino deitados em um tapete se olhando

Resumo

​Quais são as palavras que aprendemos a usar com as crianças? Será que nosso vocabulário emocional vem recheado de sílabas que constroem respeito, amor, aceitação e liberdade? Colunista Alexandre Coimbra Amaral refletindo sobre infância e vocabulário emocional.

“Pai, tem mais palavras no mundo do que pessoas, né? Porque pessoas a gente não pode inventar, mas por outro lado, cada pessoa pode inventar quantas palavras quiser, mais que mil na vida toda!”

Foi assim que Ravi, meu filho de nove anos, conseguiu colocar poesia no iogurte com granola que lhe servia. Crianças têm esta capacidade, de fazer a poesia nascer quase por distração. Para fazer poesia da vida cotidiana, basta ter um coração aceso, com sede de cantar. Desde pequeno eu sentia que as pessoas tinham um coração que não cabe no peito, e que por isso fica querendo saltar – era assim que eu conseguia explicar os batimentos acelerados e o desassossego da alma que chega junto, a todo instante. Agora, já mais crescido, mas ainda nem de longe próximo de decifrar o que é a vida, penso que expandir o que se sente através de palavras inventadas pode ser algum alívio para tal da angústia de existir. A frase do Ravizinho tem mesmo eco em mim, tocando em alguma palavra que ainda está por ser inventada no meu coração.

Quando nos aproximamos das crianças, pensamos nas palavras a serem usadas. Sabemos que eles não têm condição de entender todas as palavras do mundo adulto, e que por isso o esforço de adaptar a linguagem para sermos entendidos é todo nosso. Mas muitos de nós chegam à maternidade e à paternidade muito distantes das palavras que uma criança consegue entender, ou que uma criança merece escutar. A adultez consegue, tantas vezes, transformar-nos em Edwards Boca-de-Tesoura, prontos a soltar palavras cortantes, daquelas que deixam cicatrizes que demoram a fazer casquinha.

E aí eu me pus a pensar em nós, estas pessoas que de repente se vêem lançadas ao mundo infantil: quais são as palavras que aprendemos a usar com as crianças? Será que nosso vocabulário emocional vem recheado de sílabas que constroem respeito, amor, aceitação e liberdade? Como podemos transcender as palavras que não gostamos de dizer-lhes, mas que ainda continuando dizendo?

A imagem que me vêm à mente é aquela de um adulto se agachando ou se ajoelhando para conversar com uma criança, para ser melhor escutada, para não provocar medo pela assimetria dos tamanhos dos corpos, para fazer conexão emocional com o pequeno com quem se fala. Eu sinto que não nos agachamos para conversar somente com as crianças que vemos à nossa frente. Nós nos postamos no tamanho das crianças para falar com elas a partir da sensibilidade que mora em nós desde que fomos infantes. Nós fazemos um esforço consciente para sair da impostação adulta, geralmente mandona e julgadora, e falar com a voz da criança que mora em nós. Porque sim, somos e seremos sempre estas crianças inventoras de palavras que não foram fundadas. Porque sim, temos corações que clamam por ganhar o mundo do afeto sensível, empático e amoroso.

Quando o coração da criança fala, algo muito estranho parece acontecer. O melhor em nós consegue se formar na palavra. As letras recebem uma cola diferente, e vão se juntando para formar um abraço em forma de invenção. A vida acontece numa outra frequência, ganhando um contorno quase impossível para quem está pagando boletos e reclamando da falta de tempo para tudo o que precisa ser feito. Falar com o coração da criança que ainda mora em nós não cala nossa mente adulta, responsável pela criação e educação dos pequenos. Pelo contrário: um dá contorno à outra, a nossa criança abraçando o adulto que sabemos ser muito bem, num passo de dança feito para encantar e transformar os dois dançantes.

Os filhos nos chamam para a dança da invenção das melhores palavras. Eles chegam abrindo a pista da vida, com seus corpos livres, com suas almas brincantes, enquanto nós ainda estamos ali sentados, observando-os ganhar o espaço com a fluidez de quem pouco teme. De repente somos levados por alguma força estranha e, sem saber, estamos entregues, duas crianças criando um mundo novo, juntando letras que criam formas novas de atender às necessidades do cotidiano e, ainda assim, fazer poesia a partir do abraço. Somos capazes de inventar, porque somos feitos do mesmo magma que compõe a existência dos pequenos que nos ensinam a viver. E, mais de repente ainda, nos vemos sendo alfabetizados por eles, num novo abecedário. Eles nos relembram que somos capazes de reinventar o amor através da palavra.

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