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‘Som familiar’: o poder dos vínculos sonoros criados na infância 

Imagem de capa para matéria sobre vínculos sonoros mostra uma arte colorida com recortes de fotos de pais e filhas.

Aos domingos, o assobio de Rene Werner Scholz, pai da comunicadora e internacionalista Flávia Werner Scholz, marcava a hora em que a família terminava o trabalho na tradicional feira do Largo da Ordem, em Curitiba (PR). Este era o sinal que dividia o compromisso da diversão: as crianças estavam liberadas para brincar!

“Minha mãe tinha uma barraquinha na feira e eu ia com meu pai e com meu irmão mais velho, o Renato. Quando acabava, a gente subia [até as ruínas] para brincar” conta Flávia. Nas memórias ainda da primeira infância, o assobio do pai é marcante até hoje.

Atualmente, aos 31, Flávia se emociona ao lembrar que o sinal do pai se espalhou por diversas memórias familiares. Uma delas foi nas suas aventuras com o grupo de escoteiros. “Ele fazia esse assobio e a gente já sabia que tinha que voltar e encontrar ele”, recorda.

A irmã de Flávia, Luciana Werner Scholz, estudante de Comunicação Organizacional, também guarda boas lembranças desse assobio. Para ela, o chamado já é uma marca familiar naturalizada entre os irmãos. “Somos quatro irmãos, né? Então, fomos acostumados a escutar esse barulho. É como um ‘preste atenção, algo está acontecendo’”, diz.

Assim como o pai, Luciana percebeu o poder de ter um “som familiar” como vínculo. Por isso, é comum usar a mesma estratégia quando precisa chamar atenção de alguém. “Até mesmo para chamar meu pai. Às vezes, se ele está longe de mim ou dos meus irmãos, eu faço esse assobio, sabe?” compartilha a filha caçula.

Um som que transmite segurança e afeto

Esses pequenos gestos entre as famílias que, muitas vezes, transformam um chamado de atenção em um momento lúdico, podem ficar para sempre na lembrança dos filhos. Cria-se, portanto, o que chamamos de “memória afetiva”. A psicóloga Bianca Caroline, especialista em atendimento infantil, explica que os vínculos sonoros materializam momentos importantes para formação da personalidade das crianças e construção daquilo que elas vão carregar consigo para a vida.

“A primeira infância é o período que vai dar base para aquela criança e para o desenvolvimento de toda uma vida”, reforça. Por isso, segundo ela, essa é uma janela de oportunidade, em que se deve ter muito cuidado e investimento nas relações de afeto e segurança.

Sobre isso, Flávia não tem dúvidas. Ela confirma que a lembrança do assobio do pai significa duas coisas. “Primeiramente, que eu tive um pai presente, o que é um grande luxo. E também, que eu tive momentos felizes na minha infância. Então, significa que eu era uma criança livre, que corria e brincava”, diz.

A irmã relaciona as mesmas memórias a uma sensação de aconchego. “Sempre tive meu pai por perto. Então, escutar isso é tipo: ‘volte para a casa, sabe?’”

Pai e filha se conectam com um assobio, que chamava as crianças da família para brincar. Rene e Flávia Werner Scholz criaram, então, memórias afetivas e estreitaram laços com esse som.

Aquele assobio que vale mais do que mil palavras

O estímulo sonoro não está conectado apenas à fantasia e ao brincar. Em casos de pais e mães que trabalham fora de casa, por exemplo, comunicar a saída e a chegada a partir de algum som ou gesto pode ajudar as crianças a regularem suas emoções. Isso porque eles passam a compreender, gradualmente, que os adultos se ausentam, mas não significa que estão abandonados, pois logo irão voltar.

“Esse vínculo é extremamente importante, porque dá segurança e acalento. Então, se a criança tem essa conexão, pode ajudar na formação de uma pessoa emocionalmente segura e com uma boa autoestima”, afirma a psicóloga Bianca Caroline.

Ao compartilhar uma situação engraçada com os filhos nas redes sociais, a criadora de conteúdo Adriana Prosa, encantou seus seguidores. “Amo a conexão deles com o pai e amo a conexão entre eles”, destacou ao mostrar como os filhos, já crescidos, reconhecem instantaneamente o assobio do pai. A sincronia entre os dois surpreendeu os seguidores e fez o vídeo ter milhares de visualizações

Um som para cada infância

Por volta dos cinco anos, a jornalista Camilla Hoshino ainda não reconhecia o valor de passar dias inteiros ao lado da mãe. Como o trabalho doméstico e do cuidado nunca foi valorizado, ela associava aquele papel a “chatices e proibições”. Por isso, o melhor momento dos seus dias era quando a campainha da sala de jantar tocava, sempre perto das oito da noite. “Essa é uma memória sonora muito marcante da minha infância, porque era hora que meu pai finalmente chegava em casa”, recorda.

Enquanto o som da campainha da cozinha era estridente e frenético, o que vinha da campainha da sala era “um ‘ding-dong’ suave, como dois toques de sino de igreja, um atrás do outro”, descreve. “Meu pai apertava o botão e segurava por alguns segundos, depois soltava”. Isso fazia com que se instalasse um silêncio entre o primeiro som agudo e o segundo grave, fazendo “diiiiiiing (…) doooong”. Era o toque certeiro para identificar quem estava à porta.

Nas suas lembranças, esse ruído anunciava acolhimento, pois quando o pai chegava, chegava também a hora de jantar, de contar as novidades do dia, talvez brincar de cavalinho e buscar a atenção que a mãe não tinha energia de dar ao longo do dia. Afinal, eram três filhos para arrumar, buscar na escola, alimentar, acompanhar os estudos e muito mais.

“Acho que inventei isso para criar uma expectativa e também uma tensão do tipo ‘papai chegou’”, brinca Carlos Ken, pai de Camilla. Ele confessa não ter certeza sobre a origem da tradição, além disso, o sinal era uma espécie de “código de segurança” em uma cidade onde a regra é “não abra a porta para estranhos”.

A prática se estendeu por muito tempo, pelo menos até os 14 anos de Camilla, idade em passou a morar em Curitiba (PR). Porém, quando a jornalista precisou retornar para São Paulo e morar com o pai novamente, o toque próprio da campainha voltou a ser a comunicação entre os dois. “A gente recebia visitas ou pessoas que trabalhavam na casa, mas se fizéssemos aquele sinal, saberíamos na hora que o outro tinha chegado em casa”, afirma.

Camilla Hoshino e o pai, Carlos Ken, têm um toque próprio na campainha de casa desde a infância da jornalista.

Músicas também marcam as memórias da infância

A estudante de serviço social, Victória Rocha, também guarda memórias sonoras de sua relação com o pai. Juntos, Victória e Edivaldo Renato compuseram uma música que simbolizava a força do vínculo entre os dois. “Era uma musiquinha que nós tínhamos criado para dialogar um com o outro”, diz.

“Amu, Amu, Amu, Amu
Amurequinho
Papai te ama
Amu
Requinho”

A repetição de “amu” na letra, somada à melodia recitada na voz do pai, eternizou o momento na lembrança da estudante. Na época, ela tinha nove anos. Atualmente, Victória considera a música como uma forma singular de trazer significado para a relação entre pai e filha. “São medidas que você cria de acordo com o que você pode fazer e que tornam a relação mais significativa, mais presente. Ou pelo menos dá essa sensação, né?”

Por causa dos estudos, ela mora em outra cidade, longe do pai. Mas tem certeza de que esta música atravessou o tempo e o espaço para ser recordada com carinho, amor e algumas gargalhadas. “Eu me sinto feliz quando escuto novamente e também acho engraçada”, diz. Com tantas boas lembranças, Victória concorda que replicar algo parecido no futuro, com os filhos, será uma forma de alimentar uma relação saudável.

Edvaldo compôs para a filha Victória uma música quando ela tinha nove anos mas até hoje a melodia acalma e traz boas lembranças para a estudante.

Sons que transpassam o tempo e trazem pertencimento

Assim como a música de Edvaldo e Victória, o assobio de Rene também transcende barreiras geográficas. Flávia conta que estava longe da família, em outro país, quando escutou um som muito parecido com aquele que o pai fazia. Confusa, a única reação possível foi olhar em volta e se perguntar: “Cadê meu pai?”

“Então, tive essa sensação, que foi de pertencimento, de reconhecimento, eu acho. Talvez saudade também, porque, enfim, eu estava distante dele”, diz Flávia.

A psicóloga Bianca Caroline reforça que essa reação não é apenas esperada, mas também muito saudável. Isso porque esses vínculos, que construíram segurança, ficaram registrados nos corpos. “A criança provavelmente se lembrará disso numa vida adulta com muito carinho, afeto, saudade e nostalgia.”

Não por acaso, até hoje, quando se lembra do som da campainha da sala de jantar, Camilla diz que sente seu coração pulsar mais forte e bate uma saudades do pai, que já mora em outro estado. Para ela, essa sensação boa tem relação com a presença afetuosa do pai.

“Parece um detalhe, mas acredito que sejam exatamente essas pequenas coisas, sinônimo de presença, que tornam os vínculos entre as famílias uma experiência de afeto única.”

Flávia concorda e projeta: “Espero que, se um dia eu tiver filhos, eu tenha essa capacidade de criar uma memória positiva, que faça eles ficarem emocionados às seis da manhã”, afirma com a voz chorosa, embalada por tantas boas lembranças.

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