Qual seria o papel do adulto para a garantia do reconhecimento e valorização das expressões infantis?
Para os especialistas, uma criança que tem sua produção artística valorizada tende a acreditar mais em si mesma e tem mais capacidade de resolver conflitos.
Falar sobre o “papel” da arte pode soar um contrassenso, afinal, a arte enquanto linguagem não precisa necessariamente cumprir uma função, não é mesmo? Porém, cada vez mais, educadores e especialistas em educação infantil concordam sobre o impacto positivo das atividades artísticas no desenvolvimento dos pequenos.
A habilidade naturalmente artística das crianças e sua potência imaginativa de recriar mundos é a matéria-prima do novo projeto da Faber-Castell. Por meio de uma ferramenta que transforma o lápis de cor da criança em animação, o app Floresta Sem Fim reforça a importância de estimular desde cedo a ideia de que é possível – e, mais do que isso, é preciso – inventar coisas que não existem, como araras de bolinhas, lobos-guará cor-de-rosa ou tamanduás-bandeira listrados, por exemplo.
Por isso, vamos juntos investigar, nesta matéria, o que afinal a arte pode fazer pela visão de mundo e de si mesmos dos pequenos? Como ela pode indiretamente influenciar em sua autocrítica, pensamento politizado e resolução de conflitos?
Se formos buscar ‘o que é arte?” no dicionário, vamos encontrar, entre outras definições que é a habilidade humana em diversos campos, da experiência à prática. O que isso significa? Para a educadora Rosa Iavelberg, autora do livro “Desenho na Educação Infantil”, muita coisa.
“A criança que aprende e se desenvolve nos planos da expressão e da construção artísticas ganha visibilidade, participação cultural e social nos âmbitos micro e macro de sua vida, tanto no período escolar como ao longo da vida, expande as capacidades cognitivas e sensíveis em todas as suas experiências escolares e extra-escolares”, explica.
Para Rosa, toda forma de arte favorece a interação social e a percepção do mundo. O desenho, especificamente, dialoga com outras formas de expressão do mundo da arte. “A expressão por intermédio do desenho é influenciada pelas culturas artísticas – lápis e papel, por exemplo, são materiais datados histórica e culturalmente, sendo assim, a expressão do desenhista pode ser genuína e autoral, mas dialoga, desde cedo, com procedimentos do mundo da arte. A concepção de livre expressão é modernista, na contemporaneidade sabemos que as culturas desenhistas alimentam o desenho infantil”, explica a educadora.
Segundo ela, a criatividade está intimamente ligada à forma como a criança se coloca no mundo, e isso vale tanto para relacionamentos interpessoais quanto o posicionamento crítico e político. “Ser criativo e autoral favorece todos os tipos de interação social e a resolução de conflito. A arte propicia o desenvolvimento equilibrado entre pensar, sentir, perceber, imaginar, criar. Ensina a resolução de problemas, o enfrentamento de obstáculos e sobre os valores humanos fundamentais.”, defende.
E aí vem a estreita relação entre arte e educação infantil, afinal, justamente nos primeiros anos de escola que as crianças descobrem, reconhecem, e até treinam seu próprio modo de conhecer, de ser e suas habilidades cognitivas individuais. Para a sorte dos pequenos, existem muitas instituições de ensino afinadas nessa percepção.
A escola de educação infantil Colégio Senhora de Fátima, de Curitiba, confia e acredita no potencial de investigação da criança e cria, durante as aulas e os experimentos regulares, o ambiente propício para as descobertas que o contato com o fazer artístico pode trazer.
“As crianças têm uma visão muito sincera e direta sobre a arte, percebem coisas que poucos adultos conseguem ver. Auxiliados, levam os conceitos que descobrem para a construção e observação de seus próprios trabalhos, para a prática de suas experiências, e passam a entender o que descobriram”, defende Lailana Krinski, atelierista da escola.
Porém, para retratar como essas questões esbarram em questões práticas como falta de recursos ou disponibilidade de perceber sensivelmente o potencial artístico da criança, conversamos com Silvia Carvalho e Denise Nalini, do Instituto Avisa Lá, que desenvolveu o projeto “Ocupação Criança”, uma plataforma que pretende dar voz e visibilidade à produção artística de alunos de educação infantil da rede pública brasileira.
Para elas, o modo como a maioria das escolas trabalha a arte revela uma descrença do que as crianças pequenas são capazes de realizar artisticamente, e denuncia uma questão ainda maior: o papel marginalizado que as crianças ocupam na sociedade.
Instituto Avisa Lá – Podemos apresentar três aspectos: o primeiro é histórico, o reconhecimento das crianças como seres capazes e com direitos é recente na história da humanidade, o segundo é a pouca divulgação dos estudos sobre a infância e a desconsideração desses saberes na construção de políticas públicas e, por fim, a padronização e estereotipia do que seriam as expressões infantis e do que as crianças “gostam”.
Há uma estética infantil criada pela cultura escolar e pelo consumo. Frases como “O boi baba e bebe”, desenhos mimeografados das datas comemorativas, desenhos do Bob Esponja e outros povoam as escolas não deixando lugar para a criação infantil.
Temos uma história recente de reconhecimento das especificidades da infância. O sentimento de infância e de suas diferenças foi ausente até o século XVI e somente a partir dos séculos XVII e XVIII é que as crianças começaram a ser vistas como seres diferenciados dos adultos, como jeitos próprios de pensar e se expressar.
Hoje, temos muitas conquistas, do ponto de vista dos estudos sobre a criança e a infância. Temos conhecimento disponível sobre as diferentes formas de desenvolvimento e aprendizagem infantis, sobre o brincar, a conquista dos movimentos, a aprendizagem da fala, entre tantos outros que mostram o quanto é importante investir na primeira infância.
No entanto, é mais fácil compreender teoricamente e usar um discurso que reconhece as competências infantis do que oferecer novas práticas educativas.
Além disso, convivemos com estereótipos do que seriam as expressões infantis e do que as crianças “devem gostar esteticamente”. Vemos diariamente nas mais diferentes mídias, a captura de algum interesse das crianças que são transformados em produtos e que passam a padronizar o consumo destinado à infância. Dessa maneira, os brinquedos, brincadeiras, gestos, desenhos e atitudes genuínos das crianças não são vistos.
Instituto Avisa Lá – A expressão infantil genuína é um direito da criança. Por esse motivo é dever da escola criar um bom ambiente de ensino e aprendizagem. Uma criança que tem suas produções valorizadas e suas iniciativas apoiadas pelos adultos tende a acreditar mais em si mesma e se sentir mais capaz de aprender.
Crianças são curiosas, pesquisadoras, “perguntadeiras”, estão sempre de olho no mundo e nas relações que os adultos e outras crianças estabelecem entre si. Nas brincadeiras e nos contextos de criação artística, as crianças podem vivenciar papéis e enredos, fazer diversas tentativas de forma segura, de viver e resolver conflitos, aprender a ouvir, a testar suas hipóteses, errar e poder aprender sobre o porquê do erro. Essas possibilidades deixam o ser humano mais apto para a convivência, o trabalho coletivo, cooperativo e, consequentemente, uma sociedade mais justa.
Instituto Avisa Lá – Essa é uma questão importante, pois o ser humano, para viver e crescer, necessita de um contexto social, de adultos atentos que conversem com ela e que ofereçam referências de resolução de problemas, adultos que criam situações para pensar sobre as melhores formas de resolver problemas e conflitos.
Podemos dizer que existem duas grandes possibilidades de intervenção. A primeira é indireta e está relacionada a uma observação atenta do que as crianças fazem, de como se relacionam, das brincadeiras presentes nos grupos infantis. Essa observação, quando isenta de preconceitos, permite que os adultos possam conhecer o grupo de crianças e alimentar da melhor forma possível os processos de expressão.
É preciso um olhar cuidadoso para organizar um espaço que gere autonomia para as crianças e para selecionar e organizar materiais, por exemplo. A segunda intervenção tem a ver com a qualidade das propostas feitas pelos adultos. Por exemplo, propor uma atividade de pintar ou um desenho xerocado, não permite que os traços e gestos das crianças sejam vistos.
É preciso investir em propostas que considerem a singularidade infantil e que deem espaço para a diversidade. Dessa forma, a intervenção acontece respeitando os saberes das crianças.
Instituto Avisa Lá – Aqui, duas questões estão envolvidas: uma concepção de criança capaz, competente, e o respeito ao objeto social de conhecimento, seja a música, o desenho etc. Quando eu desconsidero um ou outro, a tendência é infantilizar a criança e artificializar o objeto de conhecimento. Isto deve ser evitado a todo custo.
Um espaço educativo é mais do que um professor, é preciso uma comunidade de educadores comprometidos com as crianças, seus familiares e comunidade para que haja esse reconhecimento e valorização das produções infantis. Por isso é preciso que o educadorprofessor tenha horários de estudo, horários para realizar registros e documentar sua prática. Essa documentação permite focalizar e investir no que seria preciso para o desenvolvimento das expressões infantis. Nesse sentido é preciso defender as ações de formação continuada e a concepção de uma escola que nunca deixa de aprender.
Instituto Avisa Lá – Deveria ser quando os pontos levantados nas questões acima são considerados. Quando não se acha a criança capaz e competente, não há porque escutá-la, não é mesmo, pois o adulto sabe mais. Ouvir as crianças é o maior desafio das escolas inovadoras.
À escuta das crianças passa pela criação de contextos de brincadeira, de jogos simbólicos e de propostas expressivas que permitam a emergência da diversidade e da singularidade própria de cada criança.
*Este conteúdo foi produzido pelo extinto Catraquinha em fevereiro de 2017, em parceria com a Faber Castell. Em maio de 2018, o Catraquinha migrou para o Lunetas.
Comunicar erro