‘Se não mudarmos, o ser humano não vai sobreviver ao ser humano’

A pedagoga indígena Poty Poran, o educador Reinaldo Nascimento e a jornalista Sonia Hirsch questionam como repensar a educação em um mundo tão desnorteado

Renata Penzani Publicado em 26.05.2017
A educadora indígena Poty Poran

Resumo

A pedagoga indígena Poty Poran, o educador Reinaldo Nascimento e a jornalista Sonia Hirsch questionam como repensar a educação em um mundo tão desnorteado.

O bate-papo “Humanidades” da Ciranda de Filmes – o primeiro do festival, que terá mais duas entre hoje e amanhã, com os temas “Poéticas” e “Subjetividades” – aconteceu ontem, no Cine Itaú Augusta, abrindo a programação das Rodas de Conversa do evento, que vai até este domingo, 28 de maio, em São Paulo. Aqui, o verbo “acontecer” aparece em sua conotação mais ampla, pois foi de fato um acontecimento.

Os convidados Reinaldo Nascimento, terapeuta social e cofundador da Associação Pedagogia de Emergência no Brasil, a pesquisadora sobre saúde e alimentação Sonia Hirsch e a pedagoga e líder indígena guarani Poty Poran Turiba, com mediação do educador André Gravatá, articulador da Virada da Educação e do Movimento Entusiasmo, emocionaram uma numerosa plateia com suas reflexões.

Motivados pela pergunta que norteia o festival – “O que te nutre?” -, eles falaram sobre os desafios da educação, das relações afetivas, do pensamento voltado para a infância, e dos rumos do ser humano pautado em um mundo que prioriza cada vez mais o consumo, o trabalho e a produtividade, cada um pautado por sua própria área de atuação.

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Aline Arruda/Ciranda de Filmes

Da esquerda para a direita, Poty Poran, Sonia Hirsch, André Gravatá e Reinaldo Nascimento.

Uma das discussões centrais foi sobre o quanto negligenciamos as relações humanas e o afeto, e passamos a enxergar como normais situações que colocam o ser humano em posição de descartabilidade.

Na fala de Poran, as questões indígenas apareceram com força, principalmente em relação a como a cultura do homem branco da cidade trata o indígena, com generalizações perigosas, e quase sempre o considerando um estrangeiro dentro de sua própria terra.

“No Brasil, existem cerca de 220 etnias e mais de 180 línguas. São mais de 400 modos de e ser e estar no mundo. Não existe cultura indígena, existem culturas indígenas”

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A líder indígena Poty Poran falou sobre a perigosa generalização das culturas indígenas: “são mais de 200 etnias no Brasil”.

Outra generalização é quando falamos em uma “educação indígena”, como se só houvesse uma, e explica que a educação escolar indígena da forma como ela existe hoje – ou seja, feita pelos indígenas e para os indígenas – é muito nova, tem cerca de 30 anos, e falou sobre a influência do capitalismo sobre as culturas tradicionais. “Se a escola não é um reflexo da comunidade, ela vai ser o reflexo do sistema, que padroniza tudo e transforma o aluno em mão de obra. Queremos transformar a escola em uma reprodução não do capitalismo, mas sim da cultura guarani.

“Eu vivo nos dois sistemas. Sou indígena mas compro roupas, celular, e é o governo quem paga o meu salário. A única maneira de não ser mais capitalista seria vivermos isolados; ou então se vocês brancos fizerem uma revolução socialista”

A desconexão com a natureza também foi destacada. “O homem branco pensa em seus filhos. Nós guaranis pensamos no mínimo em nossos netos. A maneira guarani de estar no mundo é coletiva. Um guarani não pensa em fazer faculdade para abrir um escritório, mas sim para voltar e melhorar a comunidade”, disse Poty.

Escola x Escolarização

Poty Poran, que trabalha como professora há 16 anos e é vice-diretora da Escola Estadual Indígena Krukutu – entre São Bernardo do Campo e Parelheiros – falou sobre os problemas da educação no contexto do sistema capitalista e como a chegada da escola nas comunidades tradicionais impactou não só o modo de transmissão de conhecimento, como também o próprio estilo de vida da população indígena. “O grande problema da educação escolar indígena é o mesmo da educação da cidade: é a escolarização. Não se pode escolarizar tudo. A partir dos quatro anos, um bebê já vai para a creche e começa-se a escolarizar as tradições. Não posso transformar um pajé em um professor.

Os traumas do mundo são os traumas da educação

“Quando me ensinaram o que era trauma, eu percebi que o meu país inteiro estava traumatizado”, disse Reinaldo Nascimento, que desde 2014 ministra brincadeiras e ações lúdico-pedagógicas com crianças vítimas de guerra no Iraque.

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Aline Arruda/Ciranda de Filmes

O educador Reinaldo Nascimento.

Lá, o projeto Pedagogia de Emergência atende cerca de 60 mil pessoas – entre elas, 40 mil crianças – em três campos de refugiados que não têm estrutura nem sequer de saneamento básico, quanto mais de educação. Reinaldo conta que a educação nestes locais é muito precária, quando não inexistente, por falta de professores para tantas crianças.

O educador falou sobre como o trabalho do grupo atua para minimizar os impactos da violência na vida das crianças. “O trauma não é uma ferida física, é uma ferida de alma. O pior trauma é aquele praticado por aqueles que deveriam nos proteger”, disse.

‘Precisamos de uma revolução para a saúde e felicidade’

Para fechar a Roda de Conversa, a jornalista e escritora Sonia Hirsch, autora de mais de 17 livros sobre alimentação, direito à comida saudável, falou sobre os impactos do modo de vida capitalista, que leva o indivíduo a negligenciar a própria saúde e bem-estar em nome do trabalho. Consequentemente, esse sujeito passa a ser uma vítima constante do sistema de saúde, sendo levado de um exame vago e ineficaz a outro, às cegas, sem nunca ter um diagnóstico preciso da raiz dos problemas.

“Somos parasitados por dentro e por fora. Precisamos de uma revolução para a saúde e para a felicidade”, disse a pesquisadora, em relação ao modo como a sociedade encara o ser humano, como um mero reprodutor de mão de obra.

“O sistema de saúde está combalido, se não falido. A Constituição está errada quando diz que a saúde é um dever de todos. O Estado tem o dever de proporcionar aquilo que faz bem às pessoas. A saúde é um estado mental, e precisa ser protegida como nosso maior patrimônio. O próprio nome ‘seguro de saúde’ está equivocado, pois só usamos um quando já perdemos a outra. O nome correto seria seguro médico-hospitalar”.

Em outra parte da conversa, os palestrantes foram convidados a lembrar das coisas que foram normalizadas na sociedade. Sonia falou da salsicha na merenda, Reinaldo das crianças em situação de rua, e Porã do fato de o indígena ser considerado um estrangeiro dentro de sua própria terra. Pontuando a presença forte de crianças na plateia e inclusive no palco – em certo momento, Poty amamentou a filha de seis meses enquanto a Roda seguia -, eles pontuaram a necessidade de cuidar da infância e de acreditar no potencial do ser humano para mudar o rumo das coisas.

“Não temos todas as respostas, nem se pode responder tudo. São as perguntas que movem o mundo. Se a gente não mudar, o ser humano não vai sobreviver ao ser humano

“Não vamos conseguir impedir um terremoto ou uma guerra, mas a gente tem que dar o que a gente tem. Precisamos de uma pedagogia da coragem”, concluiu Reinaldo.

A Ciranda de Filmes 2017 segue com sua programação até domingo, com mais de 60 filmes que trazem inspirações sobre o universo da infância, da educação e das relações humanas, além das Rodas de Conversa, oficinas e vivências. Toda a programação é gratuita.

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