Quem pode sonhar com o Natal entre milhões de crianças com fome?

Em um breve lapso, um menino esquece a realidade. É que ele foi visitado pela infância interrompida e, por um tempinho, pôde sonhar

Viviana Santiago Publicado em 14.12.2021
Na foto, um menino negro sem camiseta e bermuda azul segura uma árvore de Natal e uma sacola plástica. Ele está num lixão. Atrás dele, há um caminhão, um homem adulto, alguns urubus e muito lixo
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Resumo

Num país onde 20 milhões de pessoas vivem na miséria, Rafael, um menino de 12 anos, que depende do lixo dos outros para comer, esquece a fome e volta a ser criança por um instante ao encontrar uma árvore de Natal descartada.

Rafael é um menino negro de 12 anos com fome e que não tem comida em casa.
Rafael é um menino negro de 12 anos com fome entre 20 milhões de pessoas que estão com fome no Brasil.
Rafael é um menino negro de 12 anos com fome entre 500 famílias que esperam os restos de comida no lixão da Piçarreira, no Maranhão.

Milhões se encontram hoje em situação de insegurança alimentar no Brasil. Isso significa dizer que essas pessoas não sabem se terão comida todos os dias. Notícias recentes nos alertaram que tem gente substituindo alimentos saudáveis por ossos de animais, que é o que dá para comprar. As 500 famílias do lixão da Piçarreira, em Pinheiro (MA), sequer podem comprar peles e ossos. Num país de fartura, correm para o lixão e ficam à espreita de um caminhão que despeja os restos de comida que alimentou os que puderam comprar comida de verdade num restaurante da cidade.

Num desses dias de espera pelo caminhão, uma foto capturou um momento em que a ternura invade a dureza da vida e a reafirma: Rafael, o menino negro de 12 anos que revirava o lixo junto da mãe, abria os sacos em busca de comida e encontrou uma pequena árvore de Natal. Ao encontrá-la, Rafael esqueceu a fome, Rafael esqueceu o lixão… 

“Rafael, como nos contos de fada, voltou a ser apenas um menino e sonhou com o Natal”

A empolgação e a alegria de Rafael diante da árvore de plástico usada emocionam. O fotógrafo João Paulo Guimarães, que fez o registro, conta que, ao perceber que era uma árvore de Natal, Rafael correu em busca de sua mãe para mostrar a árvore e partilhar o plano de levá-la para casa e transformar aquele símbolo de lixo em vida e natal.

Eu fico pensando no plano de Rafael de consertar a árvore do lixão: “Mãe, olha só, achei essa árvore! Ela está torta, mas a gente pode desentortar, arrumar as luzes e colocar na sala no dia do Natal”, e  me pergunto se a gente não podia sonhar junto com ele e desentortar e consertar o Brasil. 

“Não é possível que a fome, o lixão e uma árvore velha sejam tudo o que temos para oferecer para Rafael”

É preciso desentortar e consertar o Brasil para Rafael ser um menino negro orgulhoso de suas origens, sorridente e sonhador todos os dias. É preciso desentortar e consertar o Brasil para Rafael poder ser um menino que come em casa, que constrói com sua imaginação rica e esperançosa um mundo novo a partir de um espaço de dignidade. 

Da mesa de quem tem pão precisa surgir fome de justiça. Da mesa de quem tem água, que haja sede de igualdade. Eu quero me mover em minhas escolhas e em minha presença no mundo para que não seja esse nunca mais o registro da alegria de um menino na iminência da chegada do Natal. Sei que sozinha posso pouco, mas se não aceitarmos pouco e buscarmos o máximo como medida, tudo muda.

Que busquemos a incidência necessária para a organização de políticas públicas, a redistribuição das riquezas do país, a geração de emprego e renda, e a construção de um desenvolvimento sustentável que de fato não deixe ninguém para trás. A máxima indignação, a plena vivência de direitos de Rafael e a multidão dos que buscarão a concretização desse sonho coletivo.

Feliz Natal a todes!

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