Em apenas oito minutos, o filme consegue fazer um retrato inteligente da complexa teia de masculinidades em que todos nós estamos enroscados
O curta "Purl", da Disney-Pixar, conta a história de um novelo de lã que luta para se encaixar nos padrões do lugar onde trabalha. Uma poderosa discussão sobre os "nós" em que o machismo envolve homens, mulheres e crianças em formação.
Conhecida por produções que conseguem contar em metáforas inteligentes o que é ser humano, o curta-metragem “Purl” segue a mesma linha. Com direção de Kristen Lester, o filme traz o tema masculinidade para o centro das discussões. Trata-se da primeira produção da Disney-Pixar distribuída primeiramente na internet, via YouTube, como parte do projeto SparkShorts, uma iniciativa de descoberta de novos talentos do cinema.
O curta conta a história do primeiro dia de trabalho de um personagem inusitado, um novelo de lã. Purl chega em um escritório dominado por homens engravatados que passam os dias pelos corredores, fazendo piadas e reforçando estereótipos do que é ser homem. Nas reuniões, eles defendem que a empresa se oriente pela agressividade, gritam e batem na mesa, enquanto o novelo se vê cada vez mais perdido naquele ambiente em que a sensibilidade não parece ter lugar.
Como é característico dos curtas da Pixar, o filme subverte imagens prontas ao dar vida a um personagem inanimado; neste caso, um novelo de lã cor-de-rosa. Pela cor, quem assiste pode logo supor que o novelo é uma mulher, mas até mesmo esse aspecto pode trazer uma problematização sobre estereótipos de gênero. As reflexões que o curta coloca não passam somente por aí: o novelo se vê obrigado a conviver em um meio onde o machismo impera e impõe padrões nocivos de comportamento.
Na história, depois de ser deixado de lado diversas vezes e sofrer discriminações por ser diferente, o personagem decide se adaptar ao meio, tricotando uma espécie de fantasia de homem engravatado. Os efeitos dessa adaptação forçada ficam subentendidos na trama, e instigam a pensar sobre como nossa identidade se constrói a partir da relação com o outro, e dos estímulos do ambiente ao redor. A questão ganha mais força com a chegada de um novelo amarelo ao escritório, que passa a ser rejeitado pelos demais.
Cheio de camadas sutis e ao mesmo tempo repleto de significados, o curta provoca a pensar em uma série de questões sobre o comportamento masculino, e como a construção de uma cultura machista contribui para ambientes opressores – principalmente para as mulheres, mas não só.
A própria imagem do novelo de lã serve como metáfora para os “nós” em que o machismo envolve mulheres, homens e crianças em formação. Não por acaso, em um dado momento, as pernas e os braços do personagem se enroscam em si mesmos. Os nomes das duas personagens principais também trabalham essa metáfora da teia e do nó – Purl (ponto de tricô) e Lacy (rendado).
Em uma entrevista ao Meet the filmmakers, a diretora da produção conta que a ideia de Purl veio de sua própria vivência pessoal como animadora em um meio predominantemente masculino. “Eu era a única mulher na sala. Para fazer o que eu mais amava, eu meio que me tornei ‘um dos caras’. Quando eu comecei a trabalhar na Pixar com equipes femininas pela primeira vez, isso realmente me fez perceber quanto de mim eu tinha deixado para trás”, diz Kristen.
Com classificação livre, leve e divertido, o curta atrai também as crianças, e pode contribuir para que elas tenham um primeiro olhar sobre as representações do homem no convívio social. Afinal, por que o novelo cor-de-rosa se sente tão rejeitado naquele escritório? Por que todos os funcionários são homens, brancos e iguais uns aos outros? Por que os homens falam tão alto e interrompem discursos? Por que o personagem cor-de-rosa vai ganhando nós em seu corpo diante de cada uma das situações de opressão por que passa?
Essas e outras questões ficam para o espectador como uma pulga atrás da orelha, e se colocam para os pais e educadores como um convite para despertar curiosidade sobre assuntos como desigualdade, discriminação de gênero, masculinidade tóxica, e, principalmente, o papel da educação na formação de indivíduos que sejam capazes de subverter comportamentos socialmente construídos.
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