Em um paraíso turístico, falta educação para as crianças: estudantes e famílias cobram finalização da construção de nova escola
As escolas de Caraíva e região sofrem com a falta de estrutura. As crianças da vila, que tem aproximadamente mil habitantes, protestam por melhorias, e a educação segue negligenciada em prol do turismo.
Um vilarejo com ruas de areia, praias paradisíacas e que acolhe uma paisagem romântica de encontro do rio com o mar: Caraíva, no município de Porto Seguro, é um destino recorrente para os turistas que passam pelo extremo sul da Bahia, na chamada Costa do Descobrimento. Apesar disso, a beleza do lugar entra em choque com os problemas de atendimento à comunidade ribeirinha. Nesta terça-feira (13), estudantes da Escola Municipal de Caraíva protestavam com panelas e pandeiros, gritando no microfone:
“Aparece prefeito, nós queremos estudar
Se você não vier, como vai ficar?”
A instituição, que atende a educação infantil, além dos ensinos fundamental I e II, foi demolida em junho após reivindicações da população devido ao estado precário no qual se encontrava. “A escola foi construída para aproximadamente 90 alunos; hoje, temos mais de 200, com a mesma estrutura. Tinha parte do telhado cedendo, ventilador que pegou fogo, morcego no forro do telhado, chovia nas salas, portas com cupim, a escola estava caindo aos pedaços”, relata Talita*, mãe de um dos alunos. Enquanto as obras aconteciam, as crianças foram realocadas em salas provisórias.
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Parte das salas provisórias também enfrentava a mesma precariedade, a ponto de haver ratos na cozinha e de qualquer atividade ficar impossibilitada quando chovia, devido ao estado do telhado. Passado o prazo e ainda sem escola, estudantes e suas famílias se queixam da falta de salas de aula, que obriga os alunos a estudarem de forma remota, por meio de atividades on-line. “As crianças não querem mais estudar remotamente, percebem o quanto é difícil, e muitas famílias não possuem internet”, conta Talita. A única providência foi “colocar tapumes e derrubar o telhado [da escola]”, segundo informa o Portal Bahia Dia a Dia, “sempre com uma desculpa para não continuarem as obras”, relata Regina*, outra mãe da vila.
Segundo o Portal da Transparência da Prefeitura de Porto Seguro, uma sociedade empresarial especializada em construção de escola de ensino fundamental foi contratada no distrito de Caraíva, por R$ 4.656.527,10 (iniciada em julho de 2022). Outra obra, não diretamente ligada à escola, é de manutenção de prédios e equipamentos públicos próprios ou alugados vinculados às secretarias do município de Porto Seguro, por R$ 5.053.498,04 (iniciada em outubro de 2021). A empresa responsável pelas duas ações é a FP Sousa Construções Eirelli.
“Tem a escola de Caraíva, da Aldeia Xandó, da Aldeia Barra Velha, da Nova Caraíva, todas elas estão muito precárias, com janela quebrada, dando choque. A Escola da Nova Caraíva não tem nem mesa para as crianças poderem almoçar” – Regina*, mãe de estudante.
Segundo Talita, a comunidade encontrou outro espaço para as salas provisórias, “mas lá a prefeitura disse que não poderia construir um banheiro, além de levar no mínimo 30 dias para construir”. O Portal Lunetas entrou em contato com a prefeitura de Porto Seguro, mas, até a publicação da matéria, não obteve respostas. A ouvidoria alegou prazo de 30 dias prorrogáveis para o retorno, segundo o artigo 16 da Lei 13.460/2017.
As negligências relacionadas à educação de Caraíva e região não se restringem aos protestos das crianças na última semana. Em setembro de 2009, os professores sindicalistas Álvaro Henrique Santos e Elisney Pereira Santos foram assassinados em uma emboscada em Porto Seguro, acontecimento que marcou a reivindicação de direitos na educação no sul da Bahia e que deixou uma nuvem de medo e ameaças para quem denunciar a situação da vila – realidade muitas vezes distante dos olhos do turismo.
Para que as reivindicações por melhorias na escola acontecessem, toda a comunidade se mobilizou. Além das reuniões feitas por moradores para que Caraíva parasse e dos pedidos das crianças para que os comércios fechassem para apoiar as demandas, indígenas canoeiros restringiram o acesso à vila, que é majoritariamente realizado por barco, numa travessia de 200 metros; o acesso via carro é possível apenas pelo sul. Outra demanda do protesto, desta vez endereçada ao Estado, é a da implementação do ensino médio, pois os adolescentes da vila precisam viajar de barco diariamente ou se mudam para o outro lado do rio para seguirem os estudos.
“Tem gente que pergunta se [o protesto] foi ensaiado com as crianças, mas tudo partiu delas. Elas tiveram a ideia, colocaram em prática, criaram as músicas e estão cobrando o que é delas por direito”, conta Regina. “O posicionamento deles foi bem legal, as crianças estão aprendendo que é direito delas e que é um dever cobrar”, arremata. Já Solange*, outra mãe que vive em Caraíva, aponta que “sempre dialogam com as crianças sobre o que temos vivenciado, e a todo momento, tentamos trazer a importância de protagonizar a própria história”.
“As crianças e adolescentes estão protestando porque estão cansados. Eles têm direitos e têm consciência de que eles estão sendo negados” – Talita, mãe de estudante.
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Diante da ameaça da população de fechar a vila na época de carnaval, a prefeitura agiu rapidamente para tentar atender às demandas locais, já que o turismo na região é intenso em fevereiro e março. Porém, o descaso se manteve: as crianças seriam realocadas após 30 de agosto, mas o proprietário falou que “não iria mais [disponibilizar o espaço], porque tava na boca do verão. E a galera ganha muito dinheiro no verão. Esse foi o gatilho final para as crianças se mobilizarem de forma mais forte”, diz Talita. Em Caraíva, o turismo predatório é um fator que, há anos, mobiliza os moradores. Além do mal gerenciamento do lixo em território cercado por mata atlântica, existe uma constante disputa entre os interesses comerciais e da população local, que reclama que o crescimento da região não é acompanhado por estrutura.
“Não somente o turismo de massa é predatório, mas todas as práticas turísticas que geram impactos negativos ambientais, culturais, especulação imobiliária, trabalhos precários e mudança de modelos de vida”, afirma o consultor em turismo Yure Lobo. Apesar disso, segundo ele, o que pode reverter esse cenário é a capacidade local de articulação para reivindicação de direitos, compreendendo a própria região e o modelo de desenvolvimento que se deseja.
O Brazil tá matando o Brasil – Aldir Blanc e Maurício Tapajós
Esse cenário não atinge apenas Caraíva, mas boa parte do litoral baiano. Em Portal Seguro, o estudo “Turismo predatório e (in)sustentabilidade social”, realizado em 2016, pelo doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, Antônio Mateus Soares, apresenta os conflitos que chegaram à cidade com o crescimento dos fluxos financeiros e a ampliação das receitas da prefeitura ligadas ao turismo. “O turismo predatório é […] expresso através de exploração sexual, aventuras eróticas com adolescentes e jovens, consumo delirante e tráfico de drogas ilícitas, o que repercute na ampliação dos índices de criminalidade e a montagem de um conjunto de teias de ilegalismos”, denuncia a pesquisa.
Em 2021, a história de Nayra Gatti, 14, encontrada morta em Caraíva com marcas de estrangulamento, repercutiu na mídia. Desde 2019, após casos de assédio e violência sexual na vila, um grupo de mulheres criou o coletivo “Caraíva sem assédio”, com o objetivo de acolher vítimas e fortalecer a rede de proteção à comunidade.
As demandas dos alunos de Caraíva e região revelam um passado e um presente marcados pela violência e negligência estatal. O rastro de assédios e estupros associados ao turismo predatório ronda o local, além da repressão sofrida por quem vive Caraíva no dia a dia, sem ser turista.
Os nomes marcados com * foram alterados para preservar a identidade das fontes.
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