Por uma nova cultura de parto, homens aprendem a ser doulos

A formação de doulos aposta no convívio para a desconstrução do machismo. "Pessoas sensibilizadas cuidam bem, e isso transcende os gêneros", diz um dos alunos.

Renata Penzani Publicado em 28.04.2017
Foto em preto e branco mostra homens sentados em uma roda, numa oficina de doulos.

Resumo

Segundo o Mama Ekos, "essa aproximação dará ao homem acesso a aspectos relacionados do feminino, como sensibilidade e senso de comunhão, e isso pode transformar nossa sociedade".

Se consideramos o que diz o dicionário, doula é a mulher que apoio e formação a outra mulher durante a gravidez, no parto e após o parto. O que seriam, então, os doulos? Por que existe demanda masculina por doulagem, e o que isso acarreta para a consolidação do modelo de assistência ao parto?

“Acreditamos que o cuidar e o modo com o qual se aprende a cuidar diz mais respeito às habilidades particulares de cada um, de como cada um vai passar pela experiência de aprender a cuidar. Isto está para além do que é ser homem ou mulher, um fazer que se apresentará na vivência, na experiência que doulas e doulos terão na sua trajetória”, diz a fisioterapeuta Patricia Martins, idealizadora do Mama Ekos, de São Paulo.

Formado por um grupo de profissionais (doulas, doulas, fisioterapeutas, obstetrizes, parteiras tradicionais, psicólogos, naturólogos, permacultores, entre outros) interessados em disseminar o conhecimento acerca dos cuidados humanizados com a gestante e as famílias, o instituto oferece um curso de formação de doulagem, cuja procura por homens tem aumentado. “Das 44 pessoas inscritas no último curso, cinco eram homens. Isto nos indica uma movimentação espontânea e favorável na procura do curso”, conta Patricia.

Durante o trabalho de parto, é função da doula oferecer assistência física e emocional à mãe, ajudando-a lidar com a dor, por meio de métodos não-farmacológicos, exercícios de respiração, e também a encontrar melhores posições durante todo o processo. Desde dezembro de 2016, a presença de doulas em hospitais públicos é garantida por lei. De autoria da vereadora Juliana Cardoso, o projeto de lei complementa a lei federal 11.108/2008, que permite a entrada de um acompanhante da escolha da gestante durante o trabalho de parto.

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Mama Ekos

A formação de doulos defende que o cuidado com a gestante e o bebê é um dever de todos, não apenas da mulher.

O preconceito

Para muitas mulheres, conceder a um homem os cuidados de seu corpo durante o parto pode parecer uma ideia absurda e distante. No entanto, se queremos uma civilização que considere o cuidado uma tarefa de ambos os sexos, é bem-vindo repensar alguns modelos pré-estabelecidos. Nesse sentido, curiosamente, a procura pelo curso de doulos parte não somente de homens que estão esperando a chegada de um filho, mas também daqueles que acreditam em uma sensibilização do nascer.

“Alguns interessados são pais ou estão grávidos, além de profissionais e terapeutas que se preocupam também com a vida já em sua gênese mais essencial, na concepção de uma nova vida, seja de seu filho direto ou não”. Para ela, são pessoas que acreditam que uma criança que nasce é “um filho da terra, um novo ser com todas suas potencialidades dentro de um organismo maior, uma comunidade”.

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Mama Ekos

Qualquer pessoa interessada em saber sobre a maternidade pode participar .

“O interesse pela doulagem veio no passado, há alguns anos, mas nunca consegui fazer um curso pois as ofertas eram especificamente para mulheres. Esse ano, mudei para São Paulo, e, em busca de uma indicação de doula para minha companheira, descobri este curso”, diz o produtor cultural Heitor Perelles, doulo, grávido.

“Um doulo precisa enfrentar uma série de barreiras, como um possível ciúme do companheiro da gestante, uma estranheza por parte da família, preconceito das equipes de parto, e até mesmo um pudor no tato por conta da gestante.” diz Heitor. Porém, acreditamos que estas barreiras devem ser desconstruídas, além de que desde o início, a gestante tem o direito de escolher as pessoas que ela deseja que a acolham, apoiem ou compartilhem de sua gestação”, diz ele.

“O nascimento de um novo ser no mundo é de responsabilidade de TODOS, não somente da mulher. Por isso, os homens se tornarem conscientes e mais sensíveis sobre quais processos uma gestante passa para se tornar mãe os auxiliará a estarem presentes de um modo muito mais próximo”, defende Heitor.

Contra a violência obstétrica e a favor de homens mais empáticos

“A grande tarefa civilizacional – talvez a mais urgente dos dias atuais – consiste no resgate do princípio feminino. Chamo atenção para o fato de que não falo de categoria feminino/masculino, mas de princípios. (…) Precisamos ultrapassar a visão excludente e entender a sexualidade num nível ontológico, não como algo que o ser humano tem, mas como algo que ele é”.

O trecho acima faz parte do livro “A voz do arco-íris” (editora Sextante, 2004), do filósofo e professor Leonardo Boff. Ele defende que, se queremos um mundo mais equilibrado, precisamos começar por romper os paradigmas do sistema patriarcal de poder e dominação do homem sobre a mulher.

E como seria este “novo masculino”? Totalmente integrado com o feminino, em um equilíbrio mútuo que aproveite a essência dos dois sexos.

Para o artista e produtor cultural Marcos Felinto, que acaba de se formar doulo, a presença masculina no processo do parto é valiosa justamente por questionar a cultura de parto cesarista, que foi instaurada por homens.

“Entre elas – parteiras, doulas e gestantes – já foi criada uma forte rede de favorecimento da vida e contra a violência obstétrica. Agora, o estágio que estas profissionais da humanização procuram é revisitar as bases de nossos sistemas de educação, de modo a auxiliar homens a ocuparem a posição de oposto complementar”, defende.

“A abertura de uma gestante para receber cuidados de um doulo diz respeito à partilha da responsabilidade pela saúde, integridade física e mental da gestante e do bebê no nascimento. É uma oportunidade que temos de nos formar mutuamente a partir de novos parâmetros, e sob a luz da inteligência do corpo e da presença feminina”, diz Marcos.

Quando se diz que a responsabilidade sobre uma criança é não só dos pais e cuidadores, mas de toda a sociedade, é preciso considerar também como encaramos esse tipo de reconstrução dos ambientes “estritamente femininos”. Para Felinto, formações como essa são oportunidades para que os homens se libertem das amarras do machismo.

“Os lugares de pai, filho, amigo, irmão, marido, parceiro, namorado, patrão, empregado etc estão em vias de serem repensados sob a luz dos saberes femininos”.

Para os interessados e interessados em participar da formação, o próximo curso será realizado no segundo semestre de 2017, e é possível fazer a inscrição por meio de um formulário, que será publicado em breve na página do Mama Ekos. A colaboração é estimulada a partir de valores sugeridos, e há abertura para outras formas de troca, como recursos/serviços/atividades que auxiliarão na realização do curso de forma coletiva e a favor da sustentabilidade e humanização.

 

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