Escolher uma rua, marcar território e eleger um pioneiro para tomar conta do espaço até que a nova disputa pelo poder se dê no corre-corre entre uma calçada e outra. Quem nunca brincou de “dono da rua”? Na infância, não importa se o objetivo é se esconder, derrubar uma latinha com um taco de madeira ou pular de uma perna só sobre desenhos de giz. O importante é partir “portão afora” e explorar o mundo. Mas a cada geração parece que as brincadeiras que botam as crianças em contato com o espaço público vão se tornando mais raras. Como trazer, então, as crianças de volta para um engajamento com as cidades? Os playgrounds ao ar livre são uma opção.
Espaços democráticos nas ruas
“A rua é o espaço onde não existe credo ou cor, é onde a democracia acontece”, afirma o artista e empreendedor Roni Hirsh. Nesse sentido, ela pode ser encarada como um lugar de aprendizagem, um ponto de encontro para o convívio entre as diferenças. Idealizador do Erê Lab, Hirsh incorpora em seus projetos uma maneira de pensar parquinhos infantis a partir de suas possíveis interações com as pessoas e com as cidades.
Uma cidade com playgrounds ao ar livre
Crescimento desordenado, grandes extensões muradas, diminuição de áreas verdes, carros como atores principais do desenvolvimento urbano: as cidades dizem muito sobre si mesmas quando aprendemos a enxergá-las. Olhar ao redor e perceber se há crianças com suas famílias em praças, parques ou no transporte público pode ser uma boa maneira de saber se determinada cidade é acolhedora para a infância.
Dentro dessa lógica, os playgrounds ao ar livre podem ser um sinal de que o governo está se comunicando com as crianças e pensando em suas famílias, investindo em políticas públicas voltadas ao brincar. “Os parquinhos são diferentes das academias ao ar livre, por exemplo, pois atletas têm autonomia para praticar esportes e utilizá-las, diferente das crianças que precisam ser acompanhadas de suas famílias”, explica Roni Hirsh. Por aí se nota como cada detalhe importa. Isto é, para pensar em trazer as crianças de volta às ruas, é preciso pensar na cidade como um todo, desde sua segurança até a qualidade dos caminhos: é possível transitar naquela calçada com carrinhos de bebês ou com crianças pequenas?
Parquinhos e a criação de afetos
Além disso, de acordo com Hirsh, os parquinhos devem ser espaços receptivos e que possam estabelecer com as crianças e com a comunidade uma relação de afeto. “Do ponto de vista do próprio desenvolvimento da infância, o ideal é que os playgrounds sejam plurais – não contendo apenas um equipamento volumoso -, pois as crianças precisam ter alternativas, ser instigadas a escolher os brinquedos, explorar, correr de um lado para o outro e superar desafios. Quanto mais desafios forem apresentados a elas, mais tempo vão querer brincar e por mais anos”, garante.
Por outro lado, para a comunidade, o empreendedor aponta a necessidade de locais que criem oportunidades para pais e mães se relacionarem e dialogarem entre si.
Os parques infantis de Mário de Andrade
Os primeiros parques infantis em na cidade de São Paulo foram implementados entre 1935 e 1938, período em que o escritor Mário de Andrade assumiu a criação do Departamento de Cultura da cidade, órgão semelhante à Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Sua proposta tinha o objetivo de estabelecer um diálogo entre a educação formal e o espaço público, tornando este um ambiente complementar de aprendizado.
Com foco especialmente em filhos de imigrantes, que passavam a maioria do tempo trabalhando. Infância, brincadeira e cultura eram, portanto, elementos integrados dentro da ideia de uma educação livre para garantir o desenvolvimento integral de meninos e meninas. De acordo com Roni Hirsh, desde então não houve políticas públicas na cidade que priorizassem essa demanda.
A rua como escola
“O ar da cidade nos torna livres”. A frase marcada nos primeiros muros das cidades europeias diz bastante sobre as relações e trocas de experiências que a vida urbana proporcionou às pessoas. Para as crianças, uma oportunidade a mais de trocar conhecimento e experiências de forma lúdica e descompromissada.
Dessa forma, faz com que alarguem a percepção sobre o mundo e entendam desde cedo o que significa inclusão, diversidade e participação. Mas não são todas as cidades que permitem viver as ruas como escola ou sair da perspectiva “adultocêntrica”. Para Hirsh, a cidade de São Paulo fica devendo para outras cidades da América Latina. Em particular no que diz respeito ao aproveitamento do espaço público para a infância. E não precisamos viajar muito longe se quisermos sentir a diferença.
No Rio de Janeiro, apesar dos equipamentos mais antigos e poucos espaços atrativos do ponto de vista contemporâneo, de acordo o artista, a capital é mesmo uma cidade “voltada para fora”. Ele explica que como os playgrounds não integram os projetos arquitetônicos privados, especialmente na zona sul, as pessoas tornam as praias suas grandes praças, praticam esporte ao ar livre, utilizam a cidade, circulam pelas ruas. “Ao contrário, o que acontece em São Paulo é que prédios e condomínios possuem seus playgrounds, minúsculos, e a praça da frente fica completamente vazia.”
Cidades de aprendizagem
A ideia de “ruas como escolas” tem sido discutida em âmbito internacional. É sustentada pelos princípios de que as pessoas têm o direito de desfrutar da cidade em que vivem. E que as cidades precisam garantir educação às pessoas durante toda a vida, dentro e fora do ensino formal.
Nesse sentido, cada vez mais cidades no mundo são orientadas a promover e implementar políticas públicas que garantam o acesso dos habitantes aos benefícios da vida urbana, ponto integrado na Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. Esse debate está reunido dentro do conceito de Cidades de Aprendizagem, adotado pela UNESCO em 2013, na 1ª Conferência sobre o tema, em Pequim, na China.
No esforço de intensificar a relação entre a cidade e as crianças, o Erê Lab quer ocupar vários lugares de São Paulo e outras capitais por meio de parcerias público-privadas. A proposta é que a prefeitura possa liberar áreas a associações de bairro ou empresas patrocinem os playgrounds, gerando envolvimento, debate e participação. “Isso é fundamental para criar um processo de identidade dos moradores com o espaço”, aponta Hirsh. Mas sinalizar as cidades com “áreas da infância” e atrair as pessoas de volta às praças não são ações que nascem sem conflitos. Afinal, áreas valorizadas da cidade são locais de disputa.
Brincar: uma ferramenta de desenvolvimento
Em São Paulo, apesar dos poucos espaços legais ao ar livre para a criançada, algumas unidades do SESC oferecem parquinhos gratuitos que vão muito além do escorregador. Seus equipamentos e design exploram os movimentos corporais, apresentam desafios e aprimoram os sentidos das crianças, proporcionando uma vivência lúdica e criativa. Além disso, oferecem espaços de brincar e passeios na natureza, com grupos agendados. Dois exemplos são o SESC Itaquera e o SESC Interlagos.
E para um debate que se inicia com o “por que um parquinho precisa de mais do que um escorregador para ser legal”, ele traz inúmeras possibilidades de pensar os brinquedos como ferramenta de desenvolvimento e como ponto de exercício da cidadania. Sobretudo, revela o nó da violência nas grandes cidades: a sensação de insegurança faz com que as pessoas se sintam mais tranquilas dentro de condomínios fechados. Mas quanto mais murada a cidade, mais inseguro o espaço público. Só é possível tornar as ruas espaços propícios para a infância ocupando e vivendo esses lugares desde cedo e estabelecendo vínculos com o espaço público. Para isso, precisamos entender que planejamento urbano também é assunto de criança. O que elas não fariam “se essa rua, se essa rua fosse” sua?
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O ErêLab é uma empresa que cria e desenvolve objetos de brincar, interagir e participar, levando em consideração os movimentos das crianças e as inúmeras possibilidades de relação que elas podem encontrar no espaço. São playgrounds ao ar livre com labirintos, cipós com balanços, bosques, montanhas, ilhas, casinhas de palafita e muitas outras peças feitas de metal, madeira e borracha, a partir de um design inspirado em temáticas bem brasileiras. São brinquedos pensados a partir do olhar dos pequenos e não dos adultos e têm o objetivo de reconectar as crianças com a cidade, criando assim melhores cidadãos, políticos e gestores.