Performance no MAM polemiza e reacende reflexão: o que é arte?

"O trabalho não tem conteúdo erótico ou erotizante e trata-se de uma leitura interpretativa da obra 'Bicho', de Lygia Clark", afirmou o Museu em nota oficial

Da redação Publicado em 29.09.2017

Resumo

"La Bête", do artista Wagner Schwartz, apresenta um homem nu deitado em um tablado. Em vídeo que viralizou nas redes, uma menina aparece interagindo com a obra.

Depois do cancelamento da exposição “Queer Museu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, em Porto Alegre, devido a acusações de zoofilia e inadequação moral, outra obra de arte teve suas motivações rechaçadas publicamente.

A performance “La Bête” (“O Bicho”), do artista Wagner Scwartz, que integra a mostra 35º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, apresentado ao público em evento de abertura fechado na última terça-feira, foi acusado de incitar a pedofilia (o que é, afinal? entenda abaixo).

Trata-se de uma arte performática em que o artista se apresenta nu, deitado em um tablado de madeira. A apresentação é inspirada na obra “Bichos”, da consagrada artista plástica brasileira Lygia Clark, em que esculturas de alumínio podem ser manipuladas pelo público, e parte da interatividade proposta para brincar com a noção de articulação e desarticulação de um corpo.

A polêmica teve início com a divulgação de um vídeo, registrado por um visitante do museu, em que uma menina – que aparenta ter por volta de cinco anos – interage com a performance. No vídeo, é possível perceber que a pequena está acompanhada de uma mulher adulta – segundo informações do MAM, trata-se da mãe da criança.

O vídeo vem circulando nas redes sociais e gerou posições severas, de pessoas acusando o artista de pedofilia e erotização infantil, até quem defenda se tratar de uma exposição criminosa.

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Na imagem de divulgação do evento, a performance “La Bête”, de Wagner Schwartz.

Em nota oficial sobre o caso, o MAM afirmou que o evento em questão foi fechado para convidados, que por sua vez foram informados com antecedência sobre o conteúdo da performance.

De acordo com a instituição, as acusações “são descabidas e guardam conexão com a cultura de ódio e intimidação à liberdade de expressão que rapidamente se espalha pelo país e nas redes sociais”. O texto ressalta ainda que a sala estava ocupada pelos demais espectadores do Museu, e que acusar o artista de pedofilia é deturpar o contexto.

Leia a declaração na íntegra

O Museu Arte de Moderna de São Paulo informa que a performance ‘La Bête’, que está sendo atacada em páginas no Facebook, foi realizada na abertura da Mostra Panorama da Arte Brasileira, em evento para convidados. A sala estava sinalizada sobre o teor da apresentação, incluindo a nudez do artista. O trabalho não tem conteúdo erótico ou erotizante e trata-se de uma leitura interpretativa da obra Bicho, de Lygia Clark, sobre a manipulação de objetos articuláveis. As acusações de inadequação são descabidas e guardam conexão com a cultura de ódio e intimidação à liberdade de expressão que rapidamente se espalha pelo país e nas redes sociais. O material apresentado nas plataformas digitais omite a informação de que a criança que aparece no vídeo estava acompanhada da mãe, que participou brevemente da performance, e que a sala estava ocupada pelos espectadores. As insinuações de pedofilia são resultado de deturpação do contexto e significado da obra.

Até o momento, o post teve mais de cinco mil reações.

NOTA DE ESCLARECIMENTOO Museu Arte de Moderna de São Paulo informa que a performance 'La Bête', que está sendo…

Posted by MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo on Thursday, September 28, 2017

Para Stella Elia, professora de Arte do Ensino Fundamental da Rede Estadual de São Paulo, a questão é sensível principalmente por tocar em uma escolha individual da família.

“Penso que as crianças estavam acompanhadas pelos pais ou responsáveis, que foram avisados do conteúdo da obra”

“Mas, considero que conhecer e experimentar a própria série “Bichos” de Lygia Clark é bem mais interessante para crianças. Acho delicado esse tema, quando é uma escolha da família levar até lá, assim como levar à igreja, ao shopping e a outros lugares”, pondera Stella.

Assim como o caso recente do Queer Museu, a reação das pessoas à arte performativa do MAM reacende o debate: existe um limite para o contato das crianças com a arte? Obras de contestação social estão sempre a serviço da educação ou existe uma idade em que sua contemplação passa a ser permitida? Como os pais podem orientar os filhos do que é certo ou errado, e do que pode ou não ser consumido?

O que é pedofilia?

“Trata-se de uma doença, um desvio de sexualidade, que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças e adolescentes de forma compulsiva e obsessiva, podendo levar ao abuso sexual. O pedófilo é, na maioria das vezes, uma pessoa que aparenta normalidade no meio profissional e na sociedade. Ele se torna criminoso quando utiliza o corpo de uma criança ou adolescente para sua satisfação sexual, com ou sem o uso da violência física.” (Fonte: Childhood Brasil).

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a pedofilia configura:

  • Art. 240 do ECA – utilização de criança ou adolescente em cena pornográfica ou de sexo explícito;
  • Art. 241 do ECA – comércio de material pedófilo;
  • Art. 241-A do ECA – difusão de pedofilia;
  • Art. 241-B do ECA – posse de material pornográfico;
  • Art. 241-C do ECA – simulacro de pedofilia;
  • Art. 241-D do ECA – aliciamento de menores;

O que é arte?

Muitos pesquisadores dedicaram a vida a responder essa questão. Para as crianças, a resposta é imediata. “A arte é tudo aquilo que eu invento”, disse um dos estudantes com idades entre três e seis anos, durante um experimento realizado no Colégio Senhora de Fátima, em Curitiba.

A professora que conduziu a atividade, a atelierista e artista Lailana Krinski, conta que a atividade partiu de três indagações: O que é arte para você?; Você acha que a arte é importante para a vida das pessoas?; Por quê?

“Um dos conceitos de arte no dicionário é a habilidade humana em diversos campos da experiência e da prática. É justamente na educação infantil que as crianças descobrem, reconhecem, e até treinam seu próprio modo de conhecer, de ser e suas habilidades cognitivas individuais. A investigação em arte é uma metodologia para o conhecimento de si e do mundo, não individual, mas subjetivamente no coletivo, e tem importância em todos os níveis educacionais”, explica Lailana em matéria do Lunetas sobre a experiência.

No artigo “O adulto no mundo da literatura infantojuvenil”, o escritor Federico Ivanier diz que a arte se preocupa mais em apresentar o desconhecido do que circular pelo convencional, e por isso tem um grande poder de preparar as crianças para a vida.

“Geralmente, ela nos coloca em lugares pouco confortáveis, costuma provocar angustia, propor uma reflexão sobre o mundo desde alguém frágil, e mostrar o que nós não gostamos de ver. Potencialmente, gera incômodo desde todos os lugares possíveis: a sexualidade, a violência e a morte”.

Quais limites da arte? Há limite de idade para determinadas obras?

Caroline Arcari, autora do livro “Pipo e Fifi”, que trata do assunto abuso sexual com as crianças, explica que desde que a censura foi extinta pela Constituição de 1988, o Brasil passou a contar com um sistema de classificação indicativa, que informa a qual faixa etária um produto cultural (filmes, programas de TV, jogos, etc.) é indicado.

“Conhecer, analisar, discutir, negociar e escolher o entretenimento dos filhos é um dever e direito dos pais e responsáveis”, pondera Caroline, que é pedagoga e especialista em educação sexual.

“Crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento que precisam de ajuda tanto para selecionar quanto para compreender aquilo que assistem”

“Importante lembrar que a Classificação Indicativa não é censura e não substitui a decisão da família. A classificação é um processo democrático, com o direito à escolha garantido e preservado. A única classificação restritiva é a de 18 anos: mesmo com aprovação dos responsáveis, não é permitido que menores tenham acesso. Hoje, a legislação determina a indicação das faixa etárias apenas para filmes, dvds, peças teatrais, mas não para exposições de arte. Um projeto de lei foi proposto há menos de 15 dias, pelo Deputado Lucas Redecker, do PSDB, determinando que exposições de arte também passem a ter classificação indicativa. Esse fato foi consequência da polêmica sobre a exposição Queer Museum, no estado do RS”, lembra a pedagoga.

“É bastante sensata a ideia da classificação etária nas exposições em museus. Isso não só traz benefícios às crianças, adolescentes e seus responsáveis ao alertar o tipo de conteúdo, mas também legitima espaços como museus, galerias e instalações, como espaços que acolhem, respeitam e valorizam a criança e adolescente como sujeitos que apreciam, aprendem e se conectam com as expressões culturais e artísticas do mundo. Além disso, é imprescindível que essas exposições sejam organizadas levando em consideração todo tipo de público”, diz.

Isso nos leva a pensar sobre a recente exposição do MAM, na qual uma criança de quatro anos, sob supervisão da sua mãe, foi filmada interagindo com um homem nu em uma performance de nu artístico. Embora o MAM sinalize aos visitantes qualquer tema sensível à restrição de público e ter emitido nota oficial de que, nessa situação, a sala estava devidamente sinalizada sobre o teor da apresentação, precisamos avançar no sentido de dar atenção específica ao público infantil e adolescente, em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Sinalização é diferente de Classificação Etária.

Há uma idade correta para ter contato com a nudez?

“A criança tem contato com a nudez desde que nasce. Seja no momento da amamentação no seio, em que sua mãe está a vontade, seja brincando no banho com outras crianças, primos, nos momentos de troca de fralda na creche. A nudez em si é uma informação importante para a criança entender como funciona o próprio corpo, seja dos seus pares ou de adultos. Saber que existem diferenças entre meninos e meninas, entre os corpos das crianças e dos adultos e saber estabelecer os limites sobre o que são partes íntimas, que partes não devem ser tocadas por outras crianças ou adultos que não sejam responsáveis pela sua higiene e cuidados diários, são conhecimentos não só saudáveis, mas protetivos no que se refere à prevenção da violência sexual”, defende.

De acordo com a especialista no assunto, cabe ressaltar que é o diálogo com as crianças e o contexto que definem o efeito que uma determinada experiência fará no desenvolvimento e na saúde emocional e psicológica da criança.

“Longe de julgar a mãe que levou a criança à performance e desejando que ela tenha conversado com a filha de que aquele foi um momento único e que, em outros contextos, a privacidade, o respeito ao corpo, os limites quanto às partes íntimas devem ser respeitados, ressalto que a prevenção da violência sexual se dá por meio do diálogo claro, honesto, contínuo”, afirma.

“A educação sexual, que o senso comum tanto teme, é, na verdade, uma das formas mais eficazes de enfrentamento da violência sexual”

“Não se refere apenas ao conhecimento dos genitais e saber de onde vêm os bebês, mas aos conceitos de autoproteção, consentimento, integridade corporal, sentimentos, emoções, sonhos, identidade, tipos de toques que adultos estão autorizados ou não em relação ao corpo da criança e do adolescente – tudo isso é educação sexual. Quando fornecida com qualidade, material adequado a cada faixa etária, a educação sexual é extremamente protetiva. Crianças e adolescentes que têm educação sexual, na escola e em casa, estão 6 vezes mais protegidas contra a violência sexual.”

Por fim, a autora ressalta que é responsabilidade do MAM, do artista, da comunidade, das famílias e das instâncias envolvidas a garantia dos direitos das crianças e adolescentes. “Cabe a eles pensar, juntos, em estratégias que assegurem uma visitação de qualidade e apreciação de obras e performances, sem prejuízos ao desenvolvimento saudável desse público específico”, conclui Arcari.

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